O inferno e a esperança
A série Sandman tem causado um frenesi nos telespectadores. Não somente pela qualidade técnica do roteiro, e pela atuação do elenco, mas pela fidelidade ao texto de Neil Gaiman, também autor de Deuses Americanos e Coraline. A série, tanto quanto nas HQ’s, acompanha a jornada de Morfeus e a sua transformação pessoal. Ele que é o senhor dos Sonhos, e também o próprio sonhar e que governa de forma absoluta os seus domínios. Mas não estou aqui para fazer um release da série até porque existem milhares por aí e muitas de excelente qualidade. Mas hoje eu quero me prender a um diálogo específico que ocorreu no capítulo 4 e episódio 4, tanto na HQ quanto na série, com o título: Uma esperança no Inferno. Nesse episódio, Morfeus desce até o inferno para recuperar o seu elmo de batalha e lá ele negocia com Lúcifer uma batalha na qual, se vencido, o levaria a ser escravo do senhor do Inferno. O diálogo é basicamente um conflito metafórico e existencial, onde os conceitos se enfrentam em sua força argumentativa. Na direção de James Childs, porém, as palavras atuam sobre os corpos do oponente, realmente infligindo danos, isso acompanhado a uma fotografia sombria e vários closes nos rostos dos atores, além dos efeitos especiais que dão vida às imagens evocadas. O diálogo é esse que se segue:
Choronzon: Sou um lobo assassino, devorando sua presa.
Sandman: Sou um caçador de lobos, montado a cavalo.
Choronzon: Sou uma mosca que pica o cavalo e derruba o caçador.
Sandman: Sou uma aranha devoradora de moscas.
Choronzon: Sou uma cobra comedora de aranhas.
Sandman: Sou um boi esmagador de cobras.
Choronzon: Sou uma bactéria...uma bactéria destruidora de vidas.
Sandman: Sou um mundo no espaço, nutrindo a vida.
Choronzon: Sou uma nova explodindo...cremando planetas.
Sandman: Sou o universo, abraçando todas as coisas, toda a vida.
Choronzon: Sou a anti-vida, a besta do julgamento. Eu sou a escuridão no fim de tudo. O fim do universo,dos deuses, dos mundos...DE TUDO! Oque você é então, mestre dos sonhos?
Sandman: Eu sou a esperança.
O que mais me impressionou nesse diálogo desde a primeira vez que o li não foi o fato dele citar a esperança como um final feliz de tudo, mas como um porém, um apesar, um ainda que. A esperança surge não como uma solução de todas as coisas, mas como uma ARMA que existe em um mundo de constante destruição entre si. E isso é uma visão muito além do que se apregoa por aí sobre a esperança, essa história de que vai dar tudo certo e que se não deu certo é porque não chegou ao fim. Mas isso não é uma visão minha apenas. A língua portuguesa também já entendeu isso.
No nosso último encontro no clube do livro com a artista Elidayana Alexandrino, discutimos sobre o poder das palavras e percebemos que a antiga origem da palavra esperança a partir do verbo esperar não era mais "correta", pois entende-se que ela não é apenas uma espera passiva, ela é um verbo. E esse verbo é esperançar. E a gente conjuga ele em um contexto de perdas, traumas, tristezas, luto…
E se até no inferno a esperança é uma arma, nesse setembro amarelo quem sabe você não deva se apropriar dela.