A espiritualidade no conflito

As pessoas, em geral, têm dificuldade de compreender o sentido da palavra “espiritualidade”. E é justamente por causa desse equívoco que não conseguem desenvolver adequadamente um cristianismo eficaz, de acordo com seu estado de vida. Muitos a confundem com “espiritismo” ou “espiritualismo” e apontam para algum modo de vida espiritual, sem saber conceituar nem tampouco avaliar como se desdobra esse tipo de vivência. Por ser a espiritualidade uma forma muito rica de relação com Deus, ela aponta para um estilo de vida. De vida cristã.

A ambigüidade da vida humana

O grande desafio da espiritualidade cristã é compatibilizar uma vida voltada para os apelos do Espírito na ambigüidade da vida material a que todos estão sujeitos. Não é possível a ninguém, alienar-se de sua vida material, social, profissional, familiar, política, etc. É justamente nessas circunstâncias de nossa existência que devemos nos encontrar com Deus, sem fugir do mundo, mas relacionando-nos com o Infinito conforme nosso estado de vida. Reside aí o desafio: viver uma vida cristã, espiritualizada e voltada para o alto, sem furtar-se à vida material e à dimensão sócio-fraterna inerente a esse tipo de vida.

A espiritualidade de cada estado de vida

É fundamental que se insista na necessidade que os cristãos têm, cada vez mais, de descobrirem eles próprios os caminhos de sua espiritualidade, de acordo com a forma de vida abraçada por cada um, sem que um queira viver em sua vida o tipo de espiritualidade do outro, ou simplesmente se omitindo. Deus quer que eu me envolva com ele, sem, no entanto, fechar os olhos à injustiça que sofre o irmão, o vizinho, o companheiro de caminhada. Essa opressão é uma tônica gritante fora do âmbito das grandes capitais do Sul-Sudeste. Em tudo ocorrem conflitos e desacertos. Na psicologia, vemos conflito, segundo as teorias behavioristas, como um “estado provocado pela coexistência de dois estímulos que disparam reações mutuamente excludentes”. Simplificando, há quem defina, igualmente como “profunda falta de entendimento entre duas ou mais partes”. A vida humana, e a existência dos cristãos não está imune, ocorre no meio dos conflitos. O conflito possui diversos estágios, desde não-percebido, em potencial, latente e manifesto.

A radiografia dos conflitos

No meio das comunidades, especialmente no interior do país, ocorre a grilagem e o choque com os posseiros, contrastando com o coronelismo, a extração irregular de madeira e minérios, a falta de demarcação de terras indígenas, ameaças ao meio-ambiente, doenças e endemias tropicais, subemprego, violência (e não-raro mortes) contra sindicalistas, líderes comunitários e ministros da Igreja. Isto sem falar nos “reflorestamentos” de árvores que só produzem celulose, plantações de maconha, etc. A isto se soma a falta de saneamento básico, um sistema educacional deficiente e famílias que se desestruturam por problemas sociais, econômicos e de migração compulsória. Há, por causa desses conflitos, uma perda de fé e de referenciais humanos.

Na Igreja urbana

Na “igreja urbana” os conflitos têm origem nas discordâncias pessoais ou de pequenos grupos, com certa “disputa de beleza” para saber quem sabe mais, quem pode mais, ou quem trabalha melhor. Isso ocorre, em certos locais, nos “conselhos”, nos “movimentos” e “serviços” paroquiais e grupos de ministérios leigos, onde há muita luta pelo posto de coordenador, etc. O confronto também pode surgir em disputas entre leigos e religioso (a)s.

Palavra e fé

Tudo deve ter início, a partir da iluminação da fé, pela Palavra de Deus, numa formação bíblica e doutrinária adequada, assim como a descoberta de uma nítida consciência crítica, não jungida a outros modelos de vida cristã, mas adequados à vida concreta de cada pessoa, conforme sua missão no meio do mundo. Sendo a espiritualidade a forma como nos relacionamos com Deus, é importante que deixemos de lado certo tipo de cristianismo desvinculado com a vida e o mundo, demasiadamente angelista, sem o compromisso com as transformações que o evangelho de Jesus não cansa de nos exortar.

O profeta deve denunciar

Toda a religião vivida de modo alienado torna-se alienante, para quem a pratica e para tantos quantos interajam com pessoas que assim atuam. Além disto, a vivência de uma espiritualidade incoerente é capaz de, pelo negativo do testemunho, desviar muitas pessoas do caminho reto, da amizade com Deus, da Igreja e do serviço aos irmãos. Os profetas davam alento ao povo sofredor por causa da coragem de seu testemunho e de suas denúncias.

Diferentes tipos de cultura

Para quem conhece o Brasil fica a constatação da existência de um conflito, entre o ser-cristão de muitos e a figura paulina do “espírito do mundo”. O conflito se instala, muitas vezes, dentro das Igrejas, com motivação político-ideológica, social e por causa da busca de poder, intentada por determinados grupos. Para quem, como eu, reside no Sul do país, onde se vive sob o foco de uma religião de corte nitidamente europeu, burocrática, sacramentalista, demasiadamente hierárquica, que forma uma “Igreja sentada”, estática, pouco missionária e, geralmente acomodada, muitas facetas do conflito passam despercebidas.

O poder que gera conflito

No Norte e Nordeste do Brasil viver a fé é estar no meio do conflito, pois os obstáculos, como a natureza hostil, as pressões políticas, o descaso oficial e as ameaças dos poderes sociais criam nas pessoas, especialmente pobres, humildes e sem voz, faz emergir a necessidade de um profetismo militante. A convivência com os negros e os índios, cada um segregados à sua maneira, a sobrevivência sob o tacão da opressão, seja ela representada pelo patrão, pelo senhor dos engenhos ou do latifúndio, impõe a esses grupos de excluídos, certas necessidades de viver a fé, de relacionar-se com Deus, organizando-se, fomentando um espírito crítico, sem apelar para a violência e sem a tentação de quebrar os paradigmas da paz e do perdão. A própria Justiça, que em tese deveria ser cega, dispensa a cada grupo um quinhão proporcional a sua representatividade social.

Dois tipos de erro

Querendo devolver olho-por-olho as injustiças sofridas, muitos abandonam a fé, por não saberem desenvolver uma “espiritualidade no conflito”. Muitos erram alienando-se dos problemas; outros por querer revidar as agressões. Em alguns lugares do Brasil, os crentes vivem uma espiritualidade cômoda, sem riscos; em outros, têm que desenvolvê-la no meio do conflito. Só com fé, espírito de oração, e desejo de concórdia é possível conviver com o conflito sem se deixar contaminar por seus efeitos negativos. Caso contrário estaríamos ao invés de pacificadores, nos tornando incentivadores do conflito e da discórdia, gerando ódios e confrontos, que nos afastam totalmente da piedade cristã.

Uma espiritualidade discernida e orientada pela Palavra é capaz de nortear os rumos de quem insiste em ser cristão e viver sua fé no meio do conflito que, por exemplo, nas regiões mais ínvias, é permanente.

O autor é Teólogo leigo, Biblista e Doutor em Teologia Moral.

Excerto de uma pregação a padres e religiosos, levada a efeito pelo autor, na Região Nordeste, no mês de novembro de 2007.

Antônio Mesquita Galvão
Enviado por Antônio Mesquita Galvão em 29/11/2007
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