Noel Rosa – O filme
O filme “Noel Rosa – O poeta da Vila” estreado em 2007, com direção de Ricardo Stein, além de um belo espetáculo cinematográfico, permite também algumas reflexões sobre o Rio de Janeiro e, naturalmente, sobre a música popular brasileira.
Primeiramente, as belas imagens produzidas por Ricardo Stein nos remetem a um Rio de Janeiro bucólico e que seria, aliás, retratado por Noel Rosa, em sambas como “Feitiço da Vila”, numa época em que malandros, sambistas e artistas de rádio se confundiam em bares e cabarés e a violência urbana, que hoje se transformou em epidemia, ainda estava longe de se tornar tão séria, a ponto de variados cidadãos bradarem pela presença de capitães Nascimento e congêneres, como passou a ocorrer a partir da exibição de outro filme contemporâneo, o badalado “Tropa de elite”.
Comparando, de maneira rápida e generalizada, a cidade do Rio de Janeiro do começo dos anos 1930 e a cidade de hoje, percebemos que a exclusão social já visível há 70 anos atrás, foi atenuada num primeiro momento, por fatores nem sempre planejados como, por exemplo, a absorção de parcela da mão-de-obra negra pela nascente indústria cultural. Posteriormente, a exclusão social se ampliou e o país avançou mais e mais nos limites possíveis da exclusão e da concentração de renda até chegarmos ao quadro quase surrealista dos dias atuais.
Desde que a escravidão acabara no país, o negro havia sido alijado do trabalho da lavoura, e também ficara sem terras para trabalhar livremente, e tivera que migrar para os grandes centros, em especial o Rio de Janeiro, na tentativa de encontrar meios de sobrevivência. O desenvolvimento da música popular e do futebol abriu espaços para que muitos afro-descendentes pudessem encontrar espaços mais dignos para atuação. Uma cena do filme “Noel – o poeta da Vila”, que retrata bem a questão da exclusão e da violência na época, é aquela em que o personagem que representa o sambista Ismael Silva aparece furtando a carteira de um incauto em plena rua. Os negros sofriam de forte discriminação naqueles tempos, em que a abolição da escravatura ainda não completara nem mesmo 50 anos quando da morte de Noel Rosa.
De qualquer modo, essa questão, que não é evidentemente a temática do filme, aparece como pano de fundo na trama narrada sobre a época em que o compositor de “Três apitos” viveu, e acaba servindo como contraponto aos debates travados a partir do filme “Tropa de elite” no que concerne à questão da violência urbana. Além de apontar a possibilidade de que o cinema nacional não precisa necessariamente enveredar pelo “cinema verdade” para que se produzam bons filmes que falem da nossa realidade social e cultural, sem que as cenas de violência ou de sexo gratuitos sejam a tônica, como, aliás, já havia demonstrado o recente sucesso de “Dois filhos de Francisco”.
A outra questão a que aludimos acima e que naturalmente é principal no filme, é a vida e a obra de Noel Rosa, que já é em si mesmo um personagem de tal monta, que se algum autor o tivesse inventado, talvez muitos não acreditassem na veracidade de tal personagem. O filme de Ricardo Stein tem também esse inegável mérito que é o de re atualizar a obra poético musical de Noel Rosa, contribuindo inclusive de maneira quase didática para uma melhor compreensão sobre o processo de formação da obra do “Poeta da Vila”.
No início do filme, pode ser vista a representação do que seria uma exibição do Bando de Tangarás, grupo do qual Noel fez parte no começo da carreira. Na cena em questão, no entanto, o compositor parece estar pouco à vontade com o repertório apresentado pelo grupo. O desenrolar do filme vai mostrando mais e mais seu envolvimento com inúmeros sambistas, como foram os casos de Cartola, Ismael Silva, Nilton Bastos e outros, podendo-se verificar assim como se deu o processo de formação de sua obra a partir de uma grande influência do samba dos morros cariocas, fossem eles o Estácio, a Mangueira, a Penha ou o Salgueiro.
A genialidade de Noel está exatamente em que, a partir dessas e outras influências soube criar uma obra própria, com dicção pessoal e local, sintetizada no canto à Vila Izabel, bairro eclético, no qual naquela época, onde se entrecruzavam de maneira democrática operários da fábrica de tecidos, a classe média local, da qual o próprio Noel fazia parte e os afro-descendentes, que habitavam morros próximos e que na Vila transitavam, numa época em que a cidade não estava dividida e segmentada em facções e território demarcados da forma como é hoje.
São verdadeiramente antológicas as cenas de Noel com Ismael Silva e com Cartola, nas quais se pode vislumbrar o rico processo de criação desses três gênios de nossa música popular.
Afora essas questões, o filme oferece um fascinante painel da vida cultural e boêmia carioca da década de 1930, quando um amplo caldeirão musical composto de múltiplas influências ia sendo mexido por inúmeras mãos o que possibilitou a criação de uma riquíssima obra musical que fez com que a época fosse cognominada não por acaso de a “Era de ouro da música popular brasileira”, entre outros motivos, pela fascinante inventividade presente em inúmeros compositores, cantores, cantoras, maestros, instrumentistas e outros personagens ligados à música daqueles anos e que em grande parte ainda são cultuados e referenciados até hoje. E a riqueza foi tanta, que há espaço para que se reverenciem outras figuras ainda não devidamente estudadas e lembradas.
É com gosto que a platéia que vai assistir a “Noel – o Poeta da Vila” se delicia com os sambas mostrados ao longo da película desde o antológico “Com que roupa”, ao não menos antológico “Silêncio de um minuto”, com o qual o poeta se despede de sua amada Ceci, a “Dama do Cabaré”, aliás, título de outro samba antológico.
Mas, não se pense que o filme mergulha num saudosismo vazio, pelo contrário, a trilha sonora, assinada conjuntamente por Arto Lindsay e pelo violonista Luís Filipe de Lima, permite ver toda a atualidade da obra de Noel Rosa, seu humor, sua inventividade musical e seu lirismo poético, que podem ser assim apreciadas pelas novas gerações, tendo como fio condutor as aventuras e desventuras amorosas desse que foi, certamente, um dos mais importantes artistas brasileiros, cuja vida e obra se confundiram de tal maneira, que mais parece uma total criação ficcional de uma personalidade que viveu o que cantou e que cantou o que viveu numa dialética impressionante entre vida e obra.