Coisas que sempre existiram
“A Bíblia é manual de maus costumes”
José Saramago
“Não existem livros morais ou imorais. Os livros são bem ou mal escritos”
Oscar Wilde
Muita gente adora dizer que a Globo, especialmente através das novelas, fomenta o ódio nas famílias. Muita gente diz que as novelas levaram as famílias a se degenerar mas, se analisarmos com profundidade, tais afirmações são desprovidas de fundamento. Achar que alguém vai se tornar adúltero porque viu uma pessoa traindo o cônjuge em uma novela é ser, no mínimo, bastante ingênuo, pois sempre existiram famílias problemáticas muito antes de haver novelas. Devemos levar em consideração que as novelas são obras de ficção e, ainda que os autores digam que qualquer semelhança com pessoas ou acontecimentos reais não passa de mera coincidência, é mais do que óbvio que eles se inspiram em episódios da vida real para escrever seus roteiros. O mesmo vale para romances, contos e peças de teatro. E, falando em romances, se fosse para não ver novelas porque elas nos tornariam depravados, não era para lermos obras como Anna Karenina, Madame Bovary, O primo Basílio e O amante de Lady Chatterley porque ensinariam as mulheres a ser adúlteras. Também não seria para assistirmos a Otelo, de Shakespeare, porque isso levaria os homens a sentir ciúmes e matar suas esposas. É verdade que há histórias que exageram na violência e apresentam conteúdos bastante pesados de pornografia, mas dizer que elas levam as pessoas a se tornar violentas e imorais é muito simplista. Sempre existiram pessoas violentas e imorais e a ficção simplesmente retrata o que existe na realidade. Claro que não podemos negar que há obras ficcionais que apresentam conteúdos errados e fazem coisas como romantizar estupro ou violência, como Cinquenta tons de cinza ou Doce vingança, filme no qual uma mulher se vinga de seus estupradores de forma violenta e bastante cruel, ensinando que monstruosidade se combate com monstruosidade. Cabe a nós filtrar o que lemos ou assistimos.
Temos de admitir que comportamentos violentos, imorais e devassos existem desde os primórdios da humanidade e não dá para perdermos a chance de ler uma boa obra só porque contém coisas como adultério, homossexualidade e promiscuidade. Vamos deixar de ler obras como O cortiço de Aluísio de Azevedo ou então O bom crioulo, de Adolfo Caminha? Vale lembrar que O cortiço tem adultério e promiscuidade e O bom crioulo fala da homossexualidade na marinha. Então, como vemos, essas obras literárias não são puras e inocentes. Elas reproduziram comportamentos humanos que os autores observaram. Claro que isso não vai silenciar quem acha que as novelas acabaram com a família brasileira, como afirmou uma pessoa que disse que não assistiu à série Dois irmãos, que fala dos irmãos Yakub e Omar. Engraçado que essa pessoa parece ignorar que tal série foi baseada em um romance do mesmo nome, de autoria de Milton Hatoum. E Dois irmãos é baseado na lenda bíblica de Esaú e Jacó.
Falando na Bíblia, esse livro é cheio de famílias disfuncionais. E a própria história de Esaú e Jacó é um bom exemplo de dissensão familiar. Esaú e Jacó eram netos de Abraão e filhos de Isaac e Rebeca. Rebeca, assim como Zana em Dois irmãos, tem clara preferência por Jacó, enquanto Isaac prefere Esaú. Desde crianças Esaú e Jacó tinham clara rivalidade e Rebeca levou Jacó a enganar Isaac, que estava velho e cego, para receber a bênção no lugar de Esaú. Jacó é um bom exemplo de malandro que se dá bem. Ele posteriormente tornou-se riquíssimo enganando o sogro Labão e, além de casar com as irmãs Lia e Raquel, ainda teve duas concubinas e teve depois preferência pelo filho José, fazendo com que o mesmo fosse alvo da raiva e dos ciúmes dos irmãos, que o venderam como escravo.
A família de Jacó não é o único exemplo de família disfuncional que encontramos na Bíblia. Não devemos esquecer que Caim matou Abel, o próprio irmão, por ciúmes e que, depois, Noé amaldiçoou a descendência de Cam, seu filho, após saber que o mesmo o vira bêbado e nu. Também não podemos esquecer que Abraão casou com Sara, sua meia-irmã (Gn. 20:2-12), a qual, sendo estéril, fez com que ele deitasse com a escrava Hagar, que deu à luz Ismael. Um outro bom exemplo de que há muitas imoralidades na Bíblia é a história do rei Davi. Não podemos esquecer que ele deitou com Betsabé, que era esposa do seu oficial Urias. Como Betsabé engravidou após se deitar com Davi, ele planejou a morte de seu oficial. Quando Davi já era maduro, seu filho Amnon estuprou a própria irmã Tamar, sendo morto pelo irmão Absalão, o que fez Davi entrar em guerra contra o próprio filho. Como vemos, a Bíblia é cheia de histórias de imoralidades e violência. E podemos também mencionar a cidade de Sodoma, destruída porque os homens se deitavam com homens e o fato de que as filhas de Ló embebedaram o pai para se deitar com ele.
O que podemos dizer disso tudo? Que não dá para dizer que, antes das novelas, as famílias eram puras e perfeitas. Muita gente adora dizer, por exemplo, que antes das novelas não havia tantos gays se beijando e que hoje, por causa das novelas da Globo, as pessoas estão promíscuas e que homossexualidade se tornou um lugar comum. Acontece que promiscuidade sempre existiu e antes os homossexuais não tinham vez para se assumir. Vamos deixar de ser simplistas e admitir que nunca houve época em que as pessoas foram mais puras. Hoje, apenas se fala mais abertamente sobre essas coisas.