A História e o Torquato...
…ou seria o Torquato e a História? Como saber? Como perceber?
Como tentar entender o que foi essa figura emblemática da Cultura Brasileira? Um inconformado? Um Regionalista? Um poeta?… Ele é um produto de seu tempo ou o tempo se tornou produto de Torquato? O tempo é História? Se é, então Torquato é História? ou será… que Torquato é Tempo…? E antes que você, leitor culturalista, perca a paciência com tantas perguntas e vire para outra página, aviso desde já: – (Parafraseando um conhecido programa infantil)… Senta que lá vem a História!
Em seis de junho de 1944 – Dia D – os Aliados desembarcavam na Normandia. Poucos meses depois Hitler se suicidaria, causando assim a rendição da Alemanha e posteriormente bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, encerrariam o capítulo da História vulgarmente conhecido como Segunda Guerra Mundial. Com o fim do conflito os Estados Unidos se consolidavam de vez como a maior potência capitalista, intensificando, a partir desse ponto, seu ambicioso projeto de “Protetor do Universo”. Nesse Período o Brasil vivia a Ditadura de Getúlio Vargas e seu ambíguo modo de viver e governar, pois ao mesmo tempo que lutava ao lado dos Americanos e Ingleses contra os regimes autoritários Europeus, mantinha seu poder aos moldes mussolinianos, ou seja, ditatoriais. Enquanto isso – não muito distante dali – em Teresina (Piauí) nascia Torquato Pereira de Araújo Neto, em nove de novembro de 1944, filho de Heli Nunes (promotor público) e de Salomé (professora primária). Seu nascimento foi um parto difícil, como descreveria o escritor José Castello em seu artigo “Torquato, uma figura em pedaços”:
“Seu pai, Heli Nunes, era espírita kardecista e membro da maçonaria, enquanto a mãe, Salomé, uma católica fervorosa, uma típica beata. O filho por eles gerado teve um nascimento difícil. Salomé tinha a bacia estreita e, no parto, como relata Vaz, “o bebê foi retirado a fórceps de dentro da mãe, durante uma batalha sangrenta que durou mais de uma hora”. Um movimento brusco do médico provocou um ferimento na cabeça do bebê. D. Salomé passou mais de um ano em tratamento para curar-se das sequelas daquele nascimento. Torquato nunca deixou de se ver como filho de um trauma”.
E que traumas levariam ao jovem Torquato, anos depois, a mudar-se para Salvador? Aos 16 anos – um moleque ainda – foi estudar no colégio Nossa Senhora da Vitória, onde conheceu Gilberto Gil. Acabou envolvendo-se com a cultura soteropolitana e se aproximou de Caetano Veloso, Maria Bethânia e Gal Costa. Já era década de 60 e o mundo assistia um conflito entre o capitalismo, representado pelos EUA e o socialismo, defendido pela União Soviética (URSS). No Brasil, Juscelino Kubitschek empolgava o país com o seu: “Cinquenta anos em cinco“, provocando uma rápida industrialização, tendo como carro-chefe a indústria automobilística e um forte crescimento econômico, mas também um significativo aumento da dívida pública, interna e externa, pois para o tão falado crescimento, Kubitschek precisou pedir dinheiro a um país que – vocês com certeza, já sabem o nome!
E, meio que envolto numa aura adolescente – festeira – cultural Torquato começou a brincar, brincar de ser músico, de ser boêmio, de ser ator… – mas calma, ainda estamos em Salvador, ainda não chegamos ao Rio de Janeiro, e novamente apelo ao escritor José Castello, pois ele pesquisou bem mais do que eu … É com você, Castello! :
“Torquato foi um menino tímido que, desde cedo, ainda nos bancos escolares, já lia os poetas Castro Alves, Olavo Bilac, Fagundes Varela, Gonçalves Dias. Aos 14 anos, descobriu Machado de Assis. Em 1959, seguindo os passos de outro poeta piauiense, Mário Faustino, decidiu cursar o científico em Salvador. Não podia imaginar a opulência que o esperava. A Salvador do início dos anos 60 vivia grande agitação cultural. Lina Bo Bardi, Joaquim Koellreutter e Glauber Rocha eram só as figuras mais nobres num cenário em que surgia, como diz Vaz, “uma arte agressiva e de vanguarda”.
O Jornalista e escritor Toninho Vaz lançou, em 2005, pela Editora Casa Amarela a Pra Mim, uma biografia do poeta piauiense intitulada: Pra Mim, Chega! Uma obra com 218 páginas que descerra e analisa, sobre o ponto de vista deste biografo, determinados momentos da vida de Torquato, como foi o caso da mudança de Salvador para o Rio de Janeiro com apenas 17 anos, onde vinha trazendo toda a energia criativa, oriunda de sua terra natal e anexada aos poucos (mais rico tempo em que passou na Bahia), para depois de chegar à “cidade maravilhosa”, se defrontar com um golpe militar, em pleno ano de 1964.
Para um “sensível” como Torquato, um regime militar era sentido não apenas como um novo sistema implantado, mas sim como um terrível retrocesso, um “monstro” perseguindo todas as formas de liberdade e criatividade existentes, e que o deixou cada vez mais inquieto e perturbado. Nesse contexto surge a Tropicália- e é onde eu peço a ajuda ao meu amigo virtual de pesquisas, o site Wikipédia:
“A Tropicália, Tropicalismo ou Movimento tropicalista foi um movimento cultural brasileiro que surgiu sob a influência das correntes artísticas de vanguarda e da cultura pop nacional e estrangeira (como o pop-rock e o concretismo); mesclou manifestações tradicionais da cultura brasileira a inovações estéticas radicais. Tinha também objetivos sociais e políticos, mas principalmente comportamentais, que encontraram eco em boa parte da sociedade, sob o regime militar, no final da década de 1960. O movimento manifestou-se principalmente na música (cujos maiores representantes foram Caetano Veloso, Torquato Neto, Gilberto Gil, Os Mutantes e Tom Zé); manifestações artísticas diversas, como as artes plásticas (destaque para a figura de Hélio Oiticica), o cinema (o movimento sofreu influências e influenciou o Cinema novo de Gláuber Rocha) e o teatro brasileiro (sobretudo nas peças anárquicas de José Celso Martinez Corrêa). Um dos maiores exemplos do movimento tropicalista foi uma das canções de Caetano Veloso, denominada exatamente de ‘Tropicália’”. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Torquato_Neto).
Visto isso, podemos passar para a próxima etapa da historia deste Piauiense, o que eu chamaria de, a fase do exílio:
Em 1968, foi assassinado o pastor e ativista Martin Luther King, Jr., morria uma das principais vozes pelos direitos civis (principalmente para negros e mulheres). O mundo assistia estarrecido os eventos da Guerra do Vietnã, e explodiam protestos contra esta guerra e também contra os regimes autoritários vigentes em diversos países do mundo, sobretudo na América Latina. No Brasil, o presidente Artur da Costa e Silva instituía o AI-5, ato institucional que, dentre outras coisas, ampliou e muito a censura, determinando a censura prévia, que se estendia à música, ao teatro e ao cinema de assuntos de caráter político e de valores imorais. Seria a “machadada final” nos movimentos contra – ditadura no Brasil. E devido a esses acontecimentos muitos artistas tiveram que deixar o País, o que não excluiu a figura que aqui analisamos – O nosso velho e amigo Torquato.
Dentre os cantores que foram exilados durante a Ditadura, houveram os nomes de Raul Seixas, Caetano Veloso, Nara Leão, Chico Buarque de Holanda, Gilberto Gil, dentre outros. Já Torquato, como relataria José Castello apoiado no biografo Toninho Vaz:
“Quando o AI-5 foi decretado, Torquato estava a salvo em um cargueiro dos correios britânicos, atravessando o Atlântico, a caminho da Europa. ‘Vou embora porque alguma coisa vai explodir por aqui’, ele disse aos amigos que o levaram ao porto. Estava certo. Logo depois, Caetano e Gil seriam presos, teriam cabelos e barba raspados, se tornando mártires da resistência cultural. Torquato, por sua vez, viveu uma difícil temporada em Londres, onde a mulher, Ana, foi encontrá-lo. De Londres, mudou-se para Paris. Passaria, ao todo, um ano na Europa. Quando retornou enfim ao Brasil, já no início de 1970, o país era outro. E ele também. ‘Seu aspecto físico também era outro’, recorda Toninho Vaz. ‘Ele estava, digamos, mais louco, cabeludo e atrevido – para não dizer agressivo e afetado’”.
A escritora Eleuda de Carvalho, em seu artigo “A consistência da geleia”, analisou a trajetória jornalística de Torquato antes e após seu exílio no exterior: e percebe como o desencadear dos acontecimentos foram deixando Torquato cada vez mais “radical”, e ao mesmo tempo decepcionado e melancólico:
“Em junho de 71, escreveu (Torquato), aos sábados, a coluna Plug, no Correio da Manhã. O tema é, principalmente, cinema. Descreve Glauber Rocha, filmando numa rua poeirenta em Roma, uma cena pra Godard. Na cena seguinte, o cineasta baiano já está na África, filmando O Leão de Sete Cabeças. Cinema terceiro mundo. Torquato Neto inverte os planos: ‘uma câmera na mão e uma tese à guisa de desculpa’, atira. No jornal Última Hora, de Samuel Weiner, Torquato meteu a colher em Geleia Geral, de agosto de 71 a março de 72. À crítica soma-se a poesia, fragmentos de romances, pedaços de sua vida, os cacos de sua mente atormentada. Governo Médici. Repressão no auge. Torquato desafia o coro dos contentes. ‘Ligue o rádio, ponha discos, veja a paisagem, sinta o drama… o lado de fora é frio. O lado de fora é fogo’. De Glauber: ‘Eu quero que o cinema seja feito por todo mundo’. Ode ao superoito, por Torquato: ‘pode ser o fino. É fácil de manejar. Barato. Cinema é muito chato. O quente é filmar”’.
E completa:
“Geleia para o Dia de Finados. ‘Thiago, meu filho, continua crescendo e reparando’. Na outra linha, a queixa: ‘abaixo a psiquiatria dos salões e dos hospícios. A psiquiatria é repressiva’. Ele que o diga. Ele, que roeu o duro e amargo do caroço. Lucidez demais também é loucura. ”quem asfixia a música popular brasileira? Além da indústria fonográfica. Don e Ravel. O sucesso dessa gente asfixia. A parada de sucesso não sabe de nada’. Ele já deu a partida. Acenou um lenço branco. Cifrou adeuses nas páginas do jornal. ‘Quando estiver assim, não me apareça. Cresça e desapareça da minha frente, Thiago, meu filho’. E: ‘Miedo de perder-te, adiós amor que já me voy, e muito em breve eu parto mesmo… Faz quatro noites que não durmo. Meu coração despedaçado não aguenta mais. Até que a morte me separe e reintegre’. E: ‘quero porque quero o meu baião da solidão. Estou cansado’. E tchau”. (Carvalho, Eleuda de.. A consistência da geleia. O Povo, Fortaleza, Ceará 2005).
E no dia 10 de novembro de 1972, Torquato Neto não aguentou mais viver num mundo controlado por um capitalismo ditador e opressor, e resolveu seguir o conselho do seu contemporâneo e também indignado Raul Seixas, optando por não “sentar num trono de um apartamento, com a boca escancarada cheia de dentes, e esperar a morte chegar”. Ele se afundou nas drogas com o intuito de tentar fugir daquele sistema, e não tendo a mesma “sorte” de Raul, que morreu doente, Torquato adiantou o processo, ao se trancar no banheiro e abrir o gás. Morreu deixando esposa, filho, um livro publicado,composições (solo e em parceria), discos gravados, algumas participações em filmes e um bilhete:
“Tenho saudade, como os cariocas, do dia em que sentia e achava que era dia de cego. De modo que fico sossegado por aqui mesmo, enquanto durar. Pra mim, chega! Não sacudam demais o Thiago, que ele pode acordar”. (Trecho retirado do Bilhete Suicida de Torquato Neto).
Torquato nasceu numa Ditadura Civil e morreu numa Ditadura Militar, foi adolescente na época da Guerra Fria, onde nesse período a palavra de ordem era “desconfiar”. Torquato foi um desconfiado, um radical para alguns, um gênio para outros… mas antes de tudo um homem – Como qualquer um de nós – Um fruto de seu tempo… ou o tempo foi fruto dele? A Tropicália fez Torquato ou Torquato fez a Tropicália? E será que existiu mesmo Tropicália? Então se não existiu Tropicália, será que existiu Torquato? Creio eu que as respostas para essas perguntas não representam o que há de mais importante ao se estudar Torquato. O mais interessante seria enxergar os “múltiplos Torquatos”, sem julgamentos de valor, sem enaltecimentos, mas também sem empobrecimentos de caráter, aí sim, dessa maneira, entenderíamos pelo menos um pouco mais do que foi essa “célebre e fúnebre figura”… Este homem que foi um… Herói ou Vilão? Santo ou Demônio? Quem arriscaria um palpite?
Ainda em tempo:
“De nada desse mundo, eu poderia afirmar, ao menos me permito “pretender dizer”, que entendo um pouco de Torquato. Não apenas pelo fato de que pesquisei em vários lugares, mas sobretudo, porque assim como ele, sou poeta… e quando digo poeta, não tento me comparar ao nível deste “grande mestre”, até porque, níveis são símbolos postos para covardemente separar, diferentes formas de sensibilidade… entendo um pouco de Torquato, não apenas porque sou historiador… mas sim porque tenho sensibilidade, e esta não é medida em graus, e nem é possível de ser observada a olho nu… só pode ser sentida… e isso só se torna possível, quando abrimos nossos canais de percepção, quando nos deixamos invadir pelo mundo das sensações… e principalmente… quando esquecemos o que é razão… assim como por vezes Torquato esqueceu… e assim como ele, nos deitarmos e adormecermos, nas infinitas areias da subjetividade…”.
Claucio Ciarlini, apenas mais um poeta (2009).