O "encontrista" e o divorciado
A vida cristã, seja ela pessoal ou comunitária, às vezes escorre para o lado surrealista, onde é possível notar-se algumas incoerências, algum tipo de espiritualidade, mais de fachada do que de conteúdo ou profundidade.
Falando na ONU em 1965, o Papa Paulo VI afirmou que a Igreja precisava de qualidade e não de quantidade, que era preciso o concurso de “cristão maciços” para levar adiante a tarefa da evangelização. Essa advertência ainda ressoa em nossos ouvidos. Um cristão maciço é o oposto de um cristão oco. Pelo menos é o que me parece...
Em um domingo desses, deparei-me, na liturgia, com aquela parábola do “fariseu e do publicano” (Lc 18, 9-14), conhecida de todos, onde dois homens vão ao templo para orar.
Um era fariseu, alguém que se julgava da elite da religião judaica, mestre e kadosh (santo), por excelência. O outro, um publicano (cobrador de impostos), considerado pelos religiosos, como pecador público, pois cobrava os tributos para o invasor romano, quando a Lei estatuía que todo o imposto era devido a Javé, devendo ser pago ao cofre do templo.
Assim, colocados lado-a-lado no templo, um se julgava santo, desfazendo do outro, execrado como pecador e definitivamente condenado. O fariseu rejeita a justiça com a mesma intensidade que se julga superior ao outro. A parábola é de uma atualidade cristalina...
A finalidade de uma parabolé é fazer a gente pensar através de uma analogia. Ela, em geral, estabelece a crítica sobre um assunto ou atitude. Pois recordo, há tempos, que um amigo, o conhecido Padre Xirú, pessoa de rara inteligência e admirável senso-crítico, fez como que uma paródia da parábola, estabelecendo uma crítica ao comportamento de determinados cristãos, às vezes ocos em sua espiritualidade. A paródia, que se chamou “O encontrista e o divorciado”, da qual fiz a adaptação que minha memória permitiu, era mais ou menos assim...
“Dois homens foram à igreja para rezar: um era encontrista, pertencente a um desses movimentos de leigos; o outro não tinha acesso a essas associações, pois era divorciado e havia casado de novo.
O encontrista, de pé, no primeiro banco, olhos fitos no sacrário, rezava assim em seu íntimo:
‘Ó Deus, eu te agradeço porque não sou como os outros
homens, ladrões desonestos, adúlteros, nem como aquele
divorciado lá no fundo da igreja. Eu começo jejuando na
quarta-feira de cinzas e na sexta-feira santa; pago
regularmente meu dízimo, acompanho procissões com minha
fita no pescoço, vou a todas as atividades de meu
Movimento, freqüento as "ultréyas", faço semanalmente
minha ‘reunião de grupo’ ou ‘pós-encontro’, fiz vinte e
cinco anos de casado, celebrei com uma missa...'
O divorciado, lá no fundo da igreja, ajoelhado, ficou à distância, e nem se atrevia a levantar os olhos para o sacrário. Só batia no peito, dizendo:
‘Meu Deus, tem piedade de mim que sou um pecador! Meu
casamento não deu certo e eu casei de novo... vivo
decentemente com a minha mulher...’.
Pois eu vos digo: este último voltou para casa justificado, o outro não. Pois quem se eleva será humilhado, e quem se humilha será elevado”.
Não se quer dizer aqui, e tenho certeza que não foi a intenção do autor, que quem participa de atividades da Igreja está errado.
Eu pertenço/pertenci a movimentos, como MFC, ECC, Emaús e Cursilhos... A tentativa do texto é chamar a atenção contra aquela tentação, pretensiosa às vezes, arrogante em outras, de cristão salvo, só porque pertence a essa ou àquela atividade, exerce esse ou aquele ministério, ou ajuda na “diretoria” da paróquia ou, ainda, porque não mata, não rouba nem comete adultério.
O fariseu podia ter bons propósitos de santidade, mas esqueceu a humildade, pecou contra a caridade julgando o irmão. É como o cristão que ostenta no seu carro um adesivo de atividade religiosa (ou um “eu sou católico”) e se esquece de repartir, acolher e perdoar.