O incêndio da última quimera
Nas férias, para que os neurônios não entrem em processo de aderência, é bom que se faça um mínimo de esforço mental, nem que seja para escolher a marca da cerveja ou decidir entre o camarão à milanesa ou o alho-e-óleo.
Ontem, para irrigar o cérebro, e não perder o hábito de pensar, eu li, acho que pela nojentésima vez, Augusto dos Anjos, em seu depressivo, “Versos Íntimos”, onde o poeta paraibano, morto no início do século diz:
“Vês! Ninguém assistiu ao formidável enterro de tua
última quimera. Somente a ingratidão, essa pantera,
foi tua companheira inseparável. Acostuma-te à lama
que te espera. O homem que nesta terra miserável,
mora entre feras, sente inevitável, necessidade de
também ser fera. Toma um fósforo. Acende um cigarro.
O beijo, amigo, é véspera de escarro; a mão que afaga
é a mesma que apedreja. Se alguém causa inda pena a
tua chaga, apedreja essa mão vil que te afaga, e
escarra nessa boca que te beija”.
Eu fiquei ali imaginando o enterro de uma quimera. E ainda estava mergulhado nesses devaneios, quando me chega o filho, bufando de raiva. O que há, perguntamos. Ele respirou fundo para espantar a indignação, e contou que na chegada de Imbituba, a Policia Rodoviária Federal fazia uma blitz, parando vários carros.
Quando foram examinar um dos últimos carros, houve uma surpresa. Era uma Brasília velha, talvez modelo 74, toda arranhada, pneus carecas, farol quebrado, faltando um pára-choque, cheia de galinhas. Quando o policial chegou perto do alterado veículo e pediu os documentos regulamentares, ocorreu o inesperado: o proprietário apanhou uma lata com gasolina, despejou em cima do veículo e tacou fogo.
Em poucos segundos as chamas estavam altas e lá se foram, o carro e as galinhas. O dono do carro dizia, desesperado: “Eu tô fudido, numa merda danada, não tenho dinheiro, faz quatro anos que não consigo emplacar essa bosta, nem botar pneus novos, ou remendar a lataria. Não tenho licença para transportar as galinhas. O que vocês iam fazer? Me multar? Apreender meu carro e as minhas galinhas?
Agora taí, queriam prender a camioneta e tirar meu meio de sustento, queimei, não é minha nem de vocês!”
E chorava. De fato, recordando o poeta paraibano, ali estava, sem dúvidas, o ponderável incêndio de uma quimera; talvez a última...
(crônica escrita em Garopaba, em fevreiro de 1998 e publicada no Diário Pipular, Pelotas/RS)