A exaltação da força da mulher e seu adoecimento

A exaltação da força da mulher e seu adoecimento

Se a mulher é feita de aço inoxidável, por que ela adoece?

Nas sociedades ditas modernas, temos observado um aumento estrondoso de pessoas adoecendo. Evidentemente que o contexto da pandemia do novo coronavírus intensificou esse fenômeno. Porém, o que desejo problematizar neste breve texto é o fato de que cada vez mais mulheres têm adoecido, por várias razões: sobrecarga de trabalho, dupla, tripla jornadas, perda de emprego e renda, violência, cobranças delas mesmas, mas que se dão em razão do que a sociedade cobra e espera delas, e outras razões. Somos sempre mais cobradas para sermos excelentes profissionais, mas também não deixarmos de ser boas mães, boas esposas, boas administradoras do lar, além disso, não podemos descuidar da aparência, precisamos “estar em forma”, sempre lindas e atraentes para os companheiros, e também não podemos envelhecer. Adoecer, então? Nem se fala! Além de ser um sinônimo de fraqueza em nossa sociedade, quem vai cuidar da casa, dos filhos, do marido? E, quem vai nos substituir no trabalho? Quem vai fazer o que nós fazemos? (E tão bem quanto...) Obviamente que muitas dessas questões se aplicam também aos homens, mas é inegável que afetam de forma muito mais ampla e profunda as mulheres. Ainda mais em se falando do conjunto das responsabilidades e cobranças (e autocobranças) que recaem sobre as mulheres. Não entrando na problematização dos atuais estudos feministas (ou mesmo dos antigos) sobre o trabalho do cuidado, nas críticas ao sistema patriarcal, e ao capitalismo, enfim, pois não haveria espaço aqui, o que noto, de modo paradoxal, é uma exaltação do nosso modo de “ser mulher”, até mesmo por parte das mulheres ou, quem sabe, muito mais por parte delas e, inclusive, de feministas! Existe um discurso muito forte de que somos “polivalentes”, de que, no fundo, seríamos até mais fortes que os homens, para contrapor a máxima que prega o sexo frágil. Até dizem que somos feitas de “aço inoxidável”, como escreve a pesquisadora Maria Inês Paulilo, em um belíssimo texto, cuja leitura recomendo: “O peso do trabalho leve” . “A mulher não pode parar, se não, a casa cai”, quem já não ouviu isso? Ou mesmo, que mulher já não sentiu isso ao correr (e recorrer) ao consultório psicológico? Isso, quando já não aguenta mais o fardo, quando já está exausta, ou então até, doente. Mulheres são maioria entre as que adoecem por depressão, transtornos de ansiedade e pânico, enxaqueca crônica, e outras tantas doenças crônicas ou autoimunes, etc. Não estou negando as questões hormonais, porém, como sou socióloga, meu campo de estudos não é a biologia. Meu questionamento é: diante disso tudo, por que aceitamos isso? Ah sim, porque vivemos em uma sociedade machista e patriarcal (responderemos...). Mas será que, ao exaltar a força da mulher, ao dizer que somos polivalentes, que a mulher pode tudo, ao não querer “abrir mão do nosso poder”, como disse uma entrevistada minha lá nos idos de 1995, quando estava terminando a minha graduação: “a mulher não quer abrir mão do seu poder na casa, lá, ela é a dona do campinho”. Tão emblemática pra mim, que jamais esqueci essa fala. Será que, com esse discurso, não estamos naturalizando o espaço que, de acordo com a sociedade, caberia à mulher? O lar? O espaço doméstico. E, ao mesmo tempo, ao dizer que somos “polivalentes”, nós não estaríamos colaborando, de algum modo, para que tudo recaia sobre nós? Não é minha ideia, de forma alguma, minorar essa questão, ou mesmo parecer que estou colocando a responsabilidade nas costas das mulheres (mais uma vez...) sobre o seu próprio adoecimento. Sou pesquisadora feminista há 25 anos. Mas, entendo que precisamos revisar nosso papel, nossas falas, ou, para usar um termo da moda, a nossa narrativa. Entendo que precisamos romper com isso. Não é por isso que lutamos? Para que os homens também assumam responsabilidades domésticas, em relação aos filhos, etc. Ou, somente desejávamos estar no mercado de trabalho e continuar com os trabalhos domésticos, acumulando assim mais funções, para assim, podermos gritar em alto e bom som: somos fortes, somos polivalentes, os homens não fazem o que nós fazemos! Então, convoco a todas as mulheres, não somente as assumidamente feministas, vamos parar de dizer que somos fortes, que somos imbatíveis, que somos polivalentes, que não podemos adoecer. Será que uma das razões de tanto adoecimento, não seria justamente porque aceitamos e carregamos todos os pesos nas costas? E, por que aceitamos o que a sociedade nos impõe? Vamos dar um basta!

Artigo publicado no Jornal O Tempo, Minas Gerais, em 12 de dezembro de 2021.

Vera Kalsing
Enviado por Vera Kalsing em 07/01/2022
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