Deixemos que o mito nos fale (Psicologia)

A psique humana é maravilhosa, porém complexa e tudo que alcançamos desde nossas percepções até o que sutilmente sentimos , isto se amplia infinitamente em expansão e profundidade, se assim posso dizer. Tudo o que captamos com a nossa percepção e chamamos “realidade”, por exemplo, é através da psique humana, nada está fora dela. Por isso abarca-la em sua completude ou acreditar que a compreende em sua plenitude é no mínimo pretensão nossa. Afinal, “somos” e/ou apreendemos que somos, a partir dela. E falar disso, apenas intelectualmente, através dos nossos conhecimentos objetivos e de estudos, é manter-se no superficial, apesar de ser uma referência, um ensaio para a vivência, sem esta última, muito se perde em sentido e não há razão que sustente nada, sem sentido.

Para mim, esta complexidade abarcando expansão e profundidade, fica muito clara nos sonhos, mitos e no trabalho com imaginação ativa. Porém, nos mitos é algo evidente esse nosso olhar mais superficial X profundo, isto, pois, tendemos a acolher o mito ou mesmo os contos de fadas, apenas pelo intelectual ou ainda, acolhemos apenas pelo olhar de algum teórico de renome ou alguém que esteja familiarizado com a linguagem. Mas, se trouxermos o mito à nossa vivência ou vice-versa, procurando compreendê-lo segundo a nossa própria análise conseguiremos abrir certas possibilidades que ninguém mais poderá ver ou sentir, considerando a unicidade de cada ser. E a complexidade da alma humana (psique) já é possível ser confrontada, no primeiro passo ao tentar compreender um mito em sua linguagem enigmática e por vezes, com um enredo aparentemente incoerente, apesar de fantástico.

Não é incomum encontrarmos certas ambiguidades nos mitos, em alguns mais evidentes do que outros onde, por exemplo, o vilão não é tão vilão assim e até ajuda em partes o herói. Ou ainda aquilo que nos parecia tão lindo, quando olhado mais de perto percebemos o quanto de destrutivo é aquele aspecto – Eros que leva Psiquê ao castelo e a mantém só para ele, cativa para seus encontros noturnos, sem contato com mais ninguém. Nesse exemplo, de fato, Eros transforma-se em monstro para Psique porque a mantém prisioneira aos seus caprichos. E o quanto esse Eros diz do “amor infantil” de Psiquê que ao desobedecer as ordens desse “Amor infantil” liberta-se do cativeiro. E quanto isso tem a ver com nossa postura na humanidade e até em nossos relacionamentos amorosos/românticos? Tudo a ver. E aí se vê o quanto um mito pode se desdobrar em diversas nuances para a nossa compreensão considerando a vivência e experiência de cada um e também, as condutas e ideias coletivas. Isto, pois, estamos falando de uma linguagem arquetípica. E quando se fala de arquétipo, não é possível restringi-lo a uma imagem apenas, esta imagem não diz daquilo que essencialmente é “vazio”, vamos dizer assim. E digo isso, pois, somente sendo vazio é possível o desdobramento em qualquer coisa que a vivência imprimir nessa tela vazia que é o arquétipo.

Sonhos, mitos, contos de fadas e trabalhar com as imagens na imaginação ativa, é desbravar esse mundo psíquico, através de uma linguagem/imagem que não conseguiremos abarcar em sua plenitude, tamanho o poder que a condição psíquica possui. Afinal, estamos apenas passeando dentro da mesma – psique - ou ela é que nos passeia (risos). E essa conclusão retiro não apenas dos estudos que faço, mas também das experiências com sonhos, mitos e imaginação ativa. E mais, estamos falando de arquétipos que ouso dizer que não conhecemos, só ouvimos falar e tentamos, intelectualmente apenas, descrevê-lo e assim entende-lo.

O que quero com essa reflexão é abrir espaço para que desapeguemos de certas imagens que dizemos ser “arquétipos”. Digo: “não são”. São imagens, simbolizam ou significam algo e traz sutilmente algo arquetípico, talvez e em alguns casos, apenas. O arquétipo pode ganhar forma através da imagem, mas não diz dele em sua plenitude; o arquétipo, liga corpo e alma, por isso não se restringe a apenas uma ideia, um sentimento ou uma imagem; diz de nossas ações sim, de nossa forma de pensar em determinada época e contexto, sem dúvida, mas vai além e não conseguiremos alcançar sua grandeza ou a grandeza que o mesmo representa, racionalmente.

Sendo assim, o mito, por possuir uma linguagem/imagem arquetípica, não pode se circunscrever a apenas seu sentido literal ou mesmo a apenas uma olhar no que tange a interpretação. É possível que o mesmo se desdobre em outras nuances em diversos momentos e diante de experiências as mais diversas, pois, o mesmo responde aos arquétipos que lhe são inerentes, portanto, atemporal e amoral.

Soltar-se diante de um mito, sentindo-o para além do que conhecemos e estudamos, liberta-nos e nos coloca frente a frente com as possibilidades arquetípicas. Desapegar-se de ideias não é algo simples, porém, possível. Permitir que mais o mito nos fale do que nós a falar sobre o mito, talvez seja um caminho interessante para que dele possamos colher o que ainda não nos chegou conscientemente. Ou ainda permitir que seu paciente, por exemplo, traga a sua interpretação sobre algum conto de fadas, sem a sua interferência, claro. Ouvi-lo, deixar que a interpretação dele chegue em você, sem a sua crítica usual, faz a diferença e pode nos abrir portas para essa espiral infinita que é a psique humana.

Agora, se você não é psicoterapeuta, leia sentindo o mito, o conto, enfim... deixe que o mesmo faça presença em si antes de qualquer interpretação e permita que as associações cheguem sem procurar entender ou interpretar. Certamente, aos poucos, um mundo de sentido pode se abrir para você, mas é preciso entender que a pressa nesse caso, vai apenas dar ainda mais voz a condição racional, por isso, paciência é importante. Não, nem sempre num primeiro contato com o mito, as associações acontecem e os sentido começam a ficar claros, afinal estamos viciados em dar sempre voz, apenas a razão. Então, pode ser que numa primeira leitura, não haja nenhuma associação. Contudo, persista, certamente a alma que em ti é, está falando e aos pouco vai se abrindo espaço para escuta. O que é, sempre permanecerá e se manifestará sempre, apenas a forma pode modificar-se e presenciar essa multiplicidade de formas, sem dúvida é presenciar a “riqueza” que é a psique humana.

A psique humana transcende ao que em nós já é tão certo, constate isso em sua experiência, permitindo que o “não-usual” ou “incomum” em suas ações enquanto, psicoterapeuta, por exemplo, aconteça de forma livre. E para quem não é psicoterapeuta, vale também a mesma sugestão, dar vazão ao incomum, ao “não-usual” – permitir que o sentido (sentir) nasça a partir do contato com o mito. A psique, a alma deseja nos falar, mas nem sempre, queremos ouvir ou gostamos de ouvir o que a mesma tem a nos dizer. Nem sempre queremos largar o “cetro de conhecedores das condições anímicas” ou ainda dizemos: “ah isso já sei”- e assim fechamos as portas para nós mesmos e, portanto, para a alma humana. Que nos possibilitemos a transcendência que a alma (psique) nos proporciona e possamos trazer ao mundo sua amplitude e profundidade. Para mim, só assim a mudança dessa realidade será possível. Um mundo menos raso e restrito às condições individualistas tão explícitas nos últimos tempos.

Kátia de Souza – 19/09/2021