Questão de fé
Certa vez, há muitos anos, conversava com um colega ateu sobre religião; ele me dizia que acreditar em Deus é uma questão de fé. Essa afirmação até hoje me faz refletir. No seu ceticismo, meu colega, alguém com boa formação teórica, estava tentando dizer-me que crer em Deus está no campo da irracionalidade, da crença sem evidências. Isto seria a fé. Ela não é racional. Mas desta opinião vêm as dúvidas que me fazem refletir: não há evidências de que exista algo tão excepcionalmente exato e harmonioso, além de nossa compreensão, que é o que poderíamos chamar de Deus? Ainda que nossa noção de Deus seja muito pessoal, talvez única, distante das concepções religiosas?
Estamos num frio invernal de temperaturas negativas; uma acha de lenha na lareira queima libertando o fogo que uma árvore armazenou, pacientemente, pouco a pouco acumulando a energia emanada pelo Sol. Na lareira de casa, reproduz-se um pequeno Sol, quente, luminoso, adormecido na madeira. E ele não só aquece e ilumina, também crepita vozes, o braseiro rubro e as chamas bruxuleantes arrebatam-nos o siso, hipnotizam, parecem transportar-nos para o turbilhão primordial incandescente que engendrou o existir de todas as coisas, e está imanente em tudo que se pode ver e tocar.
O fogo do Sol libertando-se na lareira parece-me um pequeno milagre, uma pequena manifestação de Deus. Mas a árvore que armazenou a energia do Sol, o planeta Terra que é povoado por árvores e animais, alimentados pela água, o ar, o solo fértil, os calculados arranjos astronômicos para que em nosso planeta sucedam-se perfeitamente a preamar e a baixa-mar que movem e renovam os oceanos, os dias e as noites, os verões e os invernos, os glaciais e os interglaciais, a atração da gravidade que nos apruma, a atmosfera que nos abraça e nos protege, todo esse emaranhado conspirando para gerar e fazer evoluir a vida, tudo isso não é um incrível milagre? De uma grandeza que escapa à compreensão e ao respeito dos humanos? Não enxergar que não é possível que tão calculados arranjos sejam casuais parece-me um negacionismo comparável a não aceitar que a Terra seja redonda. Negacionismo fruto de um desmesurado egocentrismo, ou antropocentrismo, ou androcentrismo.
Diante de tamanhas evidências de um poder organizador do Universo que nos acolhe, parece-me que acreditar em Deus não é uma questão de fé, mas é uma questão de humildade. É a soberba do ser humano, que engendra a cobiça, que faz que não enxerguemos o milagre da natureza e da vida. É a soberba que nos cega e nos faz devotos de igrejas que põem em guerras fratricidas seus seguidores, por discordarem de corrompidas concepções de Deus. É a soberba que faz que criaturas suponham-se superiores e degradem, explorem, escravizem outras criaturas e o ambiente que as nutre.
Vivemos um momento de alerta, com agudas crises, no meio ambiente, na ética, na política, na segurança, na saúde, na intolerância, no ódio, nas religiões, na espiritualidade, na pobreza das famílias e dos desamparados que não têm com quê se alimentar e viver com dignidade. Talvez a expressão mais contundente da crise seja a cegueira moral que acomete tantos da população mundial, que já não conseguem discernir entre verdade e embuste, necessidade e concupiscência, solidariedade e bajulação, líderes verdadeiros e tiranos ensandecidos, ilusão e esperança, seita e religião.
Tomara seja mesmo verdade a crença de que as crises são necessárias para a evolução. A crise atual que estamos vivendo estaria, assim, engendrando a humanidade evoluída, talvez liberta dos erros da cobiça, da soberba, da incredulidade, da desfaçatez.
Oxalá galguemos este degrau evolutivo; antes que a crise degenere num irreversível colapso.