PERTO DA ESCRITURA SELVAGEM
“Um instante de vôo selvagem o libertara
e o grito de triunfo que seus lábios retinham fundia seu cérebro.”
(Um retrato do artista quando jovem. James Joyce)
“Palavras muito puras, gotas de cristal. Sinto a forma brilhante e úmida debatendo-se dentro de mim. Mas onde está o que quero dizer, onde está o que devo dizer?”
(Perto do coração selvagem. Clarice Lispector)
James Joyce, em comparação com qualquer outro escritor pertencente ao fenômeno modernista na literatura, é talvez aquele que mais concentrou em suas obras análises de si mesmo ou de circunstâncias de sua vida.
O romance “Stephen Herói”, que começa a ser escrito em 1904, consiste na primeira tentativa de Joyce em produzir um romance objetivo por meio do estreito relacionamento do artista com a realidade imediata. Esperando obter êxito nesse confronto, Joyce aplicou em “Stephen...” um conjunto de imagens poéticas, cuja força reside no uso do que o escritor irlandês chamou de epifania (vem do grego epiphaino e significa: fazer aparecer, mostrar, fazer conhecer — Umberto ECO, 1969). Eis a definição de epifania que encontramos nas páginas de Stephen Herói:
“Por epifania, entendia ele [Stephen Dedalus, protagonista do romance] uma súbita manifestação espiritual que surgia tanto no meio dos mais ordinários discursos ou gestos, quanto na mais memorável das situações intelectuais. Acreditava que cabe ao homem de letras observar essas epifanias com um cuidado extremo, pois elas representam os instantes mais delicados e fugidios.”
Essa metáfora da visão, inscrita em toda poética joyciana, foi tomada de empréstimo da claritas tomista-medieval. Nos meandros da experiência poética com claritas, que Joyce traduz por “radiância”, o momento epifânico se revela quando o poeta se põe a sondar intensamente, e em toda a sua verdade, o ser do mundo visível. Dessa visão do esplendor da claridade, da radiância ou da luminosa verdade, nasce a beleza (op.cit.,1969), que leva à emoção estética: PULCHRA SUNT QUAE VISA PLACENT (“As coisas belas são as que, ao serem vistas, agradam”, afirma São Tomás de Aquino na “Summa Teológica”). Numa passagem do romance joyciano posterior, isto é, “Um retrato do artista quando jovem” (1914), o personagem central Stephen Dedalus defende suas idéias estéticas, expressando o seguinte: “_ Chamaria minha teoria estética de Aquino aplicado.”
Entretanto, o longo percurso dessa experiência estética em Joyce veio a constituir-se numa sofrida conquista. Tudo que a colocasse em risco deveria desaparecer. A respeito deste ponto, os estudiosos de Joyce referem-se com freqüência ao episódio em que o escritor procurou queimar o escrito original de “Stephen Herói”. Tomado de grande inquietação por não conseguir atingir os seus propósitos como artista-escritor, dizem que Joyce, num acesso de fúria, chegou a lançar nas chamas da lareira os manuscritos da referida obra; uma parte foi devorada pelas labaredas, outra parte foi resgatada por sua esposa, Nora, que quase queimou as mãos (Paulo VIZIOLI, 1991). Foi a abundância de detalhes somada à falta de objetividade para alcançar a realidade que levou Joyce a abandonar o propósito de concluir “Stephen Herói”. Entretanto, uma nova versão do chamuscado e inconcluso “Stephen...” dá origem a “Um retrato do artista quando jovem”, romance no qual a exposição da estética joyciana aparece em abordagem filosófica bem mais ampla. Dessa maneira, se no primeiro romance de Joyce emerge o esboço de uma teoria estética voltada para a construção de uma teoria da epifania, no segundo, isto é, em “Um retrato...” emerge uma teoria estética mais refinada. Pela mão do artista Joyce, tal romance semi-autobiográfico (romance de educação, romance de formação, ou ainda: “Bindungsroman”, como os alemães costumam nomeá-lo) procura apresentar o desenvolvimento da consciência do jovem artista Stephen Dedalus, desde a sua infância até a “conclamação do mito de Dédalo”, com o exílio voluntário do personagem-protagonista na cidade de Paris. O consagrado romance “Ulisses” (1922) deita raízes nessa obra na medida em que dá continuidade à história de Stephen Dedalus, pois, nas páginas da odisséia de 16 de junho de 1904, que tem como cenário as ruas de Dublin (Irlanda), outra vez encontramos o personagem Stephen, agora personificando o filho espiritual do herói moderno Leopold Bloom, mas ainda mantendo os mesmos conflitos vividos em “Um retrato...”
Retornando às páginas de “Um retrato...”, Joyce, sob a máscara de Stephen Dedalus, anuncia as bases de sua teoria da evolução artística; ela conduzirá o escritor irlandês a trabalhar de forma expansiva uma poética esteticista, cuja idéia central era escrever um romance essencialmente objetivo, sem qualquer ligação com o próprio criador-autor. Em verdade, foi esse projeto que levou Joyce à elaboração do herói ulissiano Leopold Bloom. Com o literato italiano Umberto Eco (Editora Melhoramentos, 1969), aprendemos que no processo do desenvolvimento da escritura joyciana “...assiste-se ao prodígio da linguagem sensível que, através de transposições metafóricas sucessivas, não faz outra coisa do que nos remeter a uma experiência intelectual e a um processo poético.” Com base nesse ponto de vista, como bem observou Olga de Sá (Editora Vozes, 1993) “no Stephen Hero, a epifania é ainda um modo de ver o mundo e, portanto, um tipo de experiência intelectual e emotiva. No Retrato, ela se transforma num processo de criar um universo por meio da palavra poética.” Com efeito, essa teoria estética, anunciada pela voz de Stephen Dedalus nas páginas de “Um retrato...”, expressa em sua essência a liberdade da atividade criadora. Ei-la:
“A personalidade do artista, a princípio um grito ou uma cadência ou um estado de espírito e em seguida uma narrativa leve e fluída, finalmente se aprimora fora da existência e, por assim dizer, se impessoaliza. A imagem estética na forma dramática é a vida purificada na imaginação humana e dela reprojetada. O mistério da estética como o da criação material está realizado. O artista, como o Deus da criação, permanece dentro ou atrás ou além ou acima de sua obra, invisível, aprimorado fora da existência, indiferente, aparando as unhas.”
Além da objetividade da linguagem poética, que sobrevive independente do artista-criador, é importante assinalarmos que tal concepção estética leva o escritor-criador a negar toda e qualquer idéia de consubstanciação. Esse demiurgo da palavra negará principalmente a idéia sagrada constituída pela tríade Deus-Pai-Filho procedente do universo religioso. Caberá, portanto, somente à arte a capacidade de registrar a vida por meio da palavra poética. Na trama gigantesca do “Ulisses”, por exemplo, Joyce, fazendo uso de um paralelo shakespeariano, e de muita ironia, retoma a questão da paternidade. Ela reaparece centrada na atormentada consciência artística do personagem Stephen Dedalus, modelada como uma espécie de espelho do melancólico príncipe Hamlet do drama de Shakespeare.
Sobre a organização do enredo de “Um retrato...” os principais temas tratam do exílio pessoal do jovem artista Stephen Dedalus; da infância e da adolescência confinadas em colégios católicos de Dublin, até as manifestações de revolta contra o autoritarismo da tradição religiosa; da obsessiva busca pelo pai espiritual e do exílio no continente europeu. Em síntese, um elenco de temas que tende a identificar qualquer tipo de sociabilidade como pura usurpação. Isso nos remete a uma importante consideração tecida por Walter Benjamin em “O Narrador” (Brasiliense, 1985) quanto às qualidades intrínsecas do romance. Nela, o filósofo alemão afirma que “escrever um romance significa, na descrição de uma vida humana, levar o incomensurável a seus últimos limites”. A afirmação benjaminiana parece endereçada a “Um retrato...”, já que os seus temas, cada um a seu modo, pleiteiam unicamente a plena independência da emoção estética do artista. Nesse caso, apenas a arte interessa; apenas conhecer o rascunho da realidade humana para se obter o acesso à realidade; esbarrar nas fronteiras da realidade para ir um pouco além: experiência perigosa com a escritura, isto é, a busca da apresentação de toda fulgurância do mundo no mundo da linguagem. É notável como os romances posteriores de Joyce — referimo-nos ao “Ulisses” e ao “Finnegans Wake” (1939) — estão estreitamente ligados a este tipo de experiência com a escritura.
Todavia, convém voltarmos a “Um retrato...”. Neste romance, os esforços do romancista irlandês em atender aos princípios da sua teoria de evolução artística parecem compensados, visto que a narrativa, com suas ramificações de imagens e de significados, tende a elevar-se progressivamente no interior do enredo até atingir o estatuto de obra de arte tencionada e fundamentada no mito de Dédalo. Foi, portanto, por intermédio desse mito e secundado por sua estratégia estética (a arte liberta de sujeição à realidade) que Joyce começou a ordenar paulatinamente os conteúdos da própria vida material (conflitos interiores, relações de amor e ódio para com a família, inconformismo em relação ao credo católico e a moral tacanha que impregnava o dia-a-dia dos dublinenses etc), para, em seguida, transcendê-los e, conseqüentemente, universalizá-los na ficção “Ulisses”. Nesse sentido, o princípio estético joyciano, com base em alusões mitológicas, encontrará expressão singular nos epifânicos “Ulisses” e “Finnegans Wake”. As páginas derradeiras de “Um retrato do artista quando jovem” revelam, mediante o emprego de metáforas do vôo, tal realização estético-dedálea:
“Agora, ao som do nome do fabuloso artífice, ele [Stephen Dedalus] parecia ouvir o barulho de ondas escuras e ver uma forma alada voando por sobre as ondas e se elevando lentamente no espaço.”
E, por fim, encerrando o romance, a voz do filho Stephen Dedalus/Ícaro re-clama — bloombaldeando para “Ulisses” — por Dédalo, o escalador do céu:
“Velho pai, Velho artífice. Valha-me agora e sempre.”
PROF.DR. SÍLVIO MEDEIROS.
Doutor em Filosofia e História da Educação pela UNICAMP. Historiador e Mestre em Filosofia Política pela PUC-Campinas.