A culpa pela pandemia e o comportamento do brasileiro

No dia 15 de março deste ano, o vice-presidente, Hamilton Mourão, foi entrevistado para falar da troca de ministro da saúde e, ao ser perguntado como o/a substituto/a poderia enfrentar a situação, ele respondeu que o que dificulta o combate ao novo coronavírus no país é o fato de o brasileiro não gostar de respeitar regras. Disse ele: “A nossa população, ela não gosta de respeitar regras. Não é da natureza do nosso povo. Nosso povo é um povo mais libertário, gosta de estar circulando pelas ruas, de fazer festa. E, no momento em que você tem que passar dois, três meses sem poder usufruir destes prazeres da vida, são poucos que aguentam” (https://portal6.com.br).

Além de querer se eximir de sua própria responsabilidade como vice-presidente pelo fracasso na gestão da pandemia, tenta imputar na população brasileira, que ele chama de “povo brasileiro”. Então, eu pergunto: De que povo ele está falando? Quem é esse povo a que ele se refere? De qual classe econômica?

O povo que acorda às cinco ou até quatro horas da manhã para pegar dois ônibus ou ainda o metrô lotado para chegar ao trabalho? O povo que acorda também por volta de cinco horas da manhã para alimentar os animais e trabalhar na roça? O povo (maioria mulheres) que deixa seus filhos com uma parenta para ir trabalhar na casa das madames? O povo que vai para o chão de fábrica? O povo que cuida dos idosos e doentes? O povo profissional da saúde? Enfim, a lista é imensa… De que povo, o nosso vice-presidente está falando? Fica a dúvida...

Mas, o que vou tentar problematizar aqui é a ideia de cidadania. Algo que me fez e ainda faz pensar muito nestes tempos de pandemia…

Um trecho célebre do cientista político e historiador José Murilo de Carvalho do Livro Cidadania no Brasil: o longo caminho traz-me muito à reflexão sobre a forma como o povo brasileiro se comporta, embora, eu discorde aqui de que seja o povo, como disse o nosso ilustre vice-presidente, mas sim, a classe média brasileira (ou média-alta). Comportamento este que encontra explicações, a meu ver, em nosso passado escravocrata.

Cito: “As consequências da escravidão não atingiram apenas os negros. Do ponto de vista que aqui nos interessa — a formação do cidadão —, a escravidão afetou tanto o escravo como o senhor. Se o escravo não desenvolvia a consciência de seus direitos civis, o senhor tampouco o fazia. O senhor não admitia os direitos dos escravos e exigia privilégios para si próprio. Se um estava abaixo da lei, o outro se considerava acima. A libertação dos escravos não trouxe consigo igualdade efetiva. Essa igualdade era afirmada nas leis, mas negada na prática. Ainda hoje, apesar das leis, aos privilégios e arrogância de poucos correspondem o desfavorecimento e a humilhação de muitos” (CARVALHO, 2014, p. 58).

O nosso grande geógrafo negro, Milton Santos, já dizia que a classe média não quer direitos e sim privilégios. Claro, direitos implica deveres, e isso é o que ela não quer!

Todas essas questões se refletiram no comportamento da classe média brasileira durante a pandemia, “não gostar de respeitar regras”, como disse o vice-presidente... Não gostar de respeitar regras quer dizer se utilizar do auxílio emergencial mesmo que você não precise. Não gostar de respeitar regras quer dizer destratar o guarda municipal porque você tem diploma de curso superior e ele não tem, porque você é um desembargador e ele é um “simples agente de trânsito” que quer te multar por você estar descumprindo uma lei, não usando a máscara! (Eu morreria de vergonha por isso). Não gostar de respeitar regras quer dizer furar a fila da vacina. É a máxima de que: “Você sabe com quem você está falando?” Só vale para os mais fracos, os que não têm poder nenhum. Ou, “Para os amigos, tudo e para os inimigos, a lei”. É o que vigora e sempre vigorou no Brasil. Uns se acham acima da lei, enquanto, os outros, ou seja, a grande maioria da população desfavorecida está abaixo dela. E, com certeza, não é essa, a classe pobre, historicamente excluída de tudo, que deve ser responsabilizada por essa tragédia anunciada, e sim a classe historicamente beneficiada, justamente aquela cuja uma amostra representativa vem revelando sua empáfia com carreatas em carros luxuosos contra medidas restritivas porque, segundo ela, isso vai “afundar a economia”, como se, a economia pudesse funcionar sem pessoas. E, ela que faz buzinassos em frente aos hospitais sem o mínimo respeito às pessoas doentes pela covid, a seus familiares e aos profissionais que estão há mais de um ano dando o seu máximo para salvar vidas. Isso tudo ficou nítido nesta pandemia. A máscara fez a nossa máscara cair, como disse o médico Arnaldo Lichtenstein. É por isso que afirmo: “O brasileiro não tem vergonha de não sentir vergonha”.

Engraçado que o vice-presidente parece exaltar o fato de o brasileiro não gostar de respeitar regras, como se isso fosse uma qualidade, quando sabemos que faz parte de qualquer processo civilizatório o respeito às normas e leis estabelecidas. Essa fala rasa do vice-presidente, que vem carregada de preconceitos e sentimentos que deveriam nos envergonhar, também naturaliza um comportamento, mas acaba por não nos causar estranhamento, já que esta equipe que está governando o país vê com naturalidade as quase 400 mil mortes pela pandemia. Esta, sim, é a principal responsável por essa tragédia. Mas, eles passarão!

Escrito em 17 de março de 2021.

Vera Kalsing
Enviado por Vera Kalsing em 28/05/2021
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