O patriarcado e a violência contra a mulher
Escrevi anteriormente um artigo abordando a retratação das mulheres nas novelas e a questão da violência. Desejo continuar a reflexão tratando da reprodução do patriarcado. Trago isso em razão de atualmente estarmos acompanhando no noticiário brasileiro um recrudescimento de casos de violência contra a mulher e feminicídios. Entendo que precisamos ir a fundo para entender o porquê de esse tipo de violência se manter em nossa sociedade.
Ouço muito as pessoas falarem a respeito da existência de uma “cultura da violência” ou de uma “cultura machista” que impera em nossa sociedade e que por isso, os homens são educados para entenderem que as mulheres são seus objetos de consumo. A ideia de que as mulheres são compreendidas como “objetos” não está errada. O que não concordo é com a ideia de explicação da violência a partir da cultura. Entendo que a cultura por si só não explica algo que é muito maior, que é estrutural. O sistema patriarcal. Dentro desse sistema, podemos ter, aí sim, a cultura, os valores e, dentro disso, a reprodução da violência. No meu entender, a violência contra as mulheres e o feminicídio só podem ser compreendidos a partir do entendimento da estrutura societal da qual fazemos parte, ou seja, esta que é patriarcal, racista e capitalista.
No artigo supracitado, eu menciono uma autora, Heleieth Saffioti, para falar da força do patriarcado e de como ele se mantém, inclusive com a ajuda das próprias mulheres. Antes de correr o risco de ser mal interpretada, quero aprofundar um pouco mais os argumentos aqui com o auxílio desta socióloga que tem importância fundamental para o entendimento do problema da violência contra a mulher no Brasil. Também gosto de utilizar um termo cunhado, até onde eu sei, por uma autora do feminismo negro estadunidense, bell hooks*, violência patriarcal, porque parece explicar melhor a ideia de que a violência cometida contra mulheres, assim como o feminicídio, são frutos de uma sociedade patriarcal, já que as mulheres são agredidas e/ou assassinadas pelo simples fato de serem mulheres.
Ao trazer a ideia desenvolvida e defendida por Saffioti de que o patriarcado é um sistema que se mantém inclusive com o apoio das mulheres, não quero entender aqui que as mulheres devem ser culpadas por reproduzir o patriarcado. Estas apenas reproduzem os valores de uma sociedade, do mesmo modo que os homens. Como afirma a pesquisadora brasileira Mirla Cisne, “as mulheres são sínteses das relações que estabelecem, mediadas por uma sociedade alienante e alienadora”.
Para explicar o poder desta instituição que é o patriarcado, Saffioti utiliza-se do filme Lanternas Vermelhas (1991). Durante toda a película, segundo ela, praticamente não se vê o rosto do patriarca, revelando este fato que Zhang Yimou captou corretamente esta estrutura hierárquica, ou seja, entendo eu, o sistema patriarcal, que confere aos homens o direito de dominar as mulheres, independentemente da figura humana singular investida de poder. “Quer se trate de Pedro, João ou Zé Ninguém, a máquina funciona até mesmo acionada por mulheres” (SAFFIOTI, 2009: 7).
Há uma ideologia que alimenta a estrutura patriarcal. Da qual, fazem parte ideias como a de que “mulher nasce para apanhar”, “em briga de marido e mulher não se mete a colher”, de que os homens têm poder e direito sobre o corpo e a até mesmo sobre a vida das mulheres, de que a mulher é o sexo frágil, de que “se apanhou é porque mereceu”, “se usou minissaia, é porque queria ser estuprada”. Assim, muitos homens entendem que as mulheres são sua propriedade e não têm direito a terminar um relacionamento. A famosa frase: “Se não vai ser minha, não será de mais ninguém” está por trás da maioria dos casos de feminicídios, que, em sua imensa maioria, são cometidos dentro de casa, pelos maridos, ou ex-maridos, noivos, namorados, ou ex.
Assim, as mulheres não passam de objetos, brinquedos dos homens, ou ainda, animais de estimação, que servem para brincar quando eles bem quiserem, e estar a sua disposição, sempre que eles assim o desejarem.
No momento em que a mulher não tem direito a por fim a um relacionamento, isso significa que ela é destituída de sua humanidade, já que não pode ter desejos, não pode ser dona de suas vontades e senhora de suas ações. Não possui assim, algo que é próprio do ser humano: a liberdade.
Todas essas ideias, instituições sociais como a família, a escola, a igreja, a mídia e, até mesmo, a ciência, ajudam na reprodução, auxiliando assim na manutenção da estrutura patriarcal da sociedade.
Por muito tempo se entendeu (e ainda se entende) que as mulheres devem ser submissas aos seus maridos com base na religião.
Em Efésios, Capítulo V, versículos 22, 23 e 24, lemos: “Que as mulheres sejam submissas aos seus maridos, como ao Senhor; com efeito, o marido é o chefe de sua mulher, como Cristo é o chefe da Igreja. Ele o Salvador do corpo. Ora, a Igreja se submete a Cristo, as mulheres devem, portanto, da mesma maneira, submeterem-se, em tudo, a seus maridos”.
Também na ciência, teorias foram construídas para legitimar “cientificamente” e assim, justificar a violência contra as mulheres, comparando-as a animais. Conforme Patrícia Santos (2001), dois dos grandes momentos históricos de lutas políticas das mulheres irão coincidir com estudos que tentam, especificamente, provar que a mulher é inferior ao homem, da Craniometria, no final do século XIX, e da Sociobiologia, que ressurgem com muita força nos anos de 1970.
Neste sentido, o patriarcado é uma estrutura que funciona com base em uma superestrutura, que é sua base ideológica. Muitas ideias alicerçadas à natureza servem de apoio para a manutenção da estrutura patriarcal.
Segundo Saffioti, o patriarcado constitui ao mesmo tempo uma ideologia e uma estrutura, uma ideologia “forjada especialmente para dar cobertura a uma estrutura de poder que situa as mulheres muito abaixo dos homens em todas as áreas da convivência humana. E é a esta estrutura de poder, e não apenas à ideologia que a acoberta, que o conceito de patriarcado diz respeito” (SAFFIOTI, 2009: 35).
*A autora escreve propositalmente seu nome com letras minúsculas com o intuito de chamar a atenção para o que ela escreve e não para o seu nome.
(Publicado em 31 de janeiro de 2021 no Jornal O Tempo, Minas Gerais)