A retratação das mulheres nas novelas e a violência
Minha área de estudos e pesquisas tem sido a questão da mulher desde a graduação em Ciências Sociais. E, uma coisa que sempre me incomodou muito é o modo como as novelas, reproduzem e reforçam estereótipos misóginos. As mulheres são geralmente representadas como cruéis, mesquinhas, perversas, invejosas, as vilãs. Hoje, praticamente não existem mais vilões nas novelas, e nem nos damos conta disso. Os homens vilões das novelas são “café pequeno” diante da maldade que as mulheres são capazes de cometer e, o mais interessante, contra a sua própria classe, ou seja, as mulheres. Elas são dotadas de uma perversidade impressionante, inimaginável. E, os homens, por sua vez, mesmo fazendo o mal, são sempre perdoados, inocentados e, para o seu “passo em falso”, a justificativa é o próprio machismo (ou a sua naturalização) e a sociedade patriarcal: “eu errei porque a carne é fraca”, “eu não resisti, porque, você sabe, isso é coisa de homem”. Já a mulher, ao contrário, se ela errou, ela tem que pagar. E, nós, telespectadores, mulheres e homens, aplaudimos quando se faz justiça, quando uma mulher é tratada “como ela merece”.
Vou tratar aqui somente de novelas da Rede Globo, por ser esta a emissora de maior audiência no país.
Vamos aos exemplos, papel da atriz Dira Paes da esposa que traía o marido, e o final que ela teve, seu marido a expulsou de casa, as mulheres aplaudiram, dizendo: “bem feito, sua vagabunda!” “Piranha!” Isso sem contar a questão racial que deveria ser aqui problematizada: uma mulher parda e um homem branco. O homem de bem, que fazia tudo por ela, um homem honesto e trabalhador, e ela, a traidora, a “vagabunda”, a mulher que não o merecia. Porém, não tratarei dessa problemática neste momento.
Outrossim, podemos trazer aqui vários exemplos de cenas protagonizadas por mulheres se digladiando entre si. E são sempre novelas do horário nobre, ou seja, a novela das nove. A força do querer, Avenida Brasil, Celebridade, O Caminho das Índias, A próxima vítima.
O homem está traindo também, mas ele nunca é castigado, somente a mulher, sendo humilhada, e sempre, por outra mulher, a que foi traída. O homem pode tudo, que sempre o seu ato estará justificado em nome do poder masculino na sociedade. E as mulheres, que brigam entre elas, por causa de um homem, não deveriam se unir? A socióloga brasileira Heleieth Saffioti nos explica muito bem isto em seu livro Gênero, Patriarcado, Violência. A questão da força da máquina do patriarcado que é reproduzido pelas próprias mulheres sem muitas vezes nos darmos conta disso.
A trama de uma novela, o principal dela, geralmente gira em torno de uma pessoa que é “ruim” e outra que é “boa” e, muitas vezes, ao menos, no caso das novelas citadas, e sei que existem outros exemplos, essas duas pessoas são mulheres, que brigam por conta de duas coisas, ou talvez, poderíamos dizer três, mas que estão associadas: dinheiro, poder e homem. E então a trama toda se desenvolve em torno disso, pequenas vinganças, tramoias, intrigas, jogos de sedução, armadilhas, até se chegar ao escândalo, ao desmascaramento da vilã, até todas as suas maldades virem à tona. Aí sim, ela será castigada como merece. E, o homem, por pior que seja, machista, mulherengo, pode trair, pode manobrar, pode passar a perna, fazer maldades, arquitetar planos que, em nossa sociedade machista, patriarcal, ele não será punido, jamais!
O mais impressionante é que, por se tratar de um programa de entretenimento, “não se leva a sério”, não se percebe o quanto a ideologia dominante está sendo incrustada em nossas mentes sem percebermos enquanto estamos justamente em nosso momento de lazer. E aí, ao invés de estas cenas nos causarem repulsa e revolta, no momento em que não questionamos, não percebemos o quanto estamos ajudando na reprodução dos estereótipos machistas, sexistas, que só ajudam na manutenção desta sociedade patriarcal.
A rede Globo é especialista em exibir em suas novelas cenas de extremo mau gosto de mulheres espancando outras mulheres em razão de ciúme e em nome da manutenção da família nuclear monogâmica burguesa. Essa mesma Rede Globo que se vangloria de ser tão liberal ao exibir cenas de casais gays em suas novelas, ao mesmo tempo em que os ridiculariza o tempo todo, os coloca sempre em papéis extremamente caricaturatos. Assim como faz também com negros, pobres e mulheres.
Mulheres são sempre mesquinhas, fúteis, ciumentas, inseguras. As mulheres retratadas como fortes e bem sucedidas financeiramente, independentes, realizadas em suas carreiras, geralmente são as "titias", as mal amadas, as "abandonadas", as que nenhum homem quis. Ou então são aquelas que vivem em crise existencial por não terem conseguido casar, ou por não terem tido filhos, ou, se têm uma família, se cobram por estarem ausentes, ou ainda, têm que tolerar a sociedade, as amigas, os parentes “jogando na cara” a traição do marido e dizendo que a culpa foi delas, pois não estavam em casa para “cuidar” do marido, pois só se preocupam com o seu trabalho. Por que o contrário não acontece? Por que o marido não é cobrado se é ausente com seus filhos? E, muitas vezes, é ele quem trai. E, a mulher, se trai, é adúltera, vagabunda, cretina. Já o homem, não, este é o “garanhão”. Mas, afinal, toda mulher precisa de um homem? Tem gente que ainda acredita nisso.
É também a mesma Rede Globo que vive trazendo notícias de violência contra a mulher e feminicídio em seus noticiários. E, em seus programas de debates na TV por assinatura, seus jornalistas sempre comentam e se posicionam contrários a esses crimes bárbaros. Porém, em seus programas de entretenimento, como as novelas, na TV aberta, continua reproduzindo estereótipos, cumprindo, deste modo, um importante papel como aparelho ideológico de Estado, aquele que ajuda na reprodução e manutenção da ideologia dominante, ou seja, a estrutura patriarcal da nossa sociedade.
(Publicado em 30 de dezembro de 2020 no Jornal O Tempo, Minas Gerais)