O racismo nosso de cada dia

O assassinato de George Floyd, um homem negro, por um policial branco em 25 de maio nos Estados Unidos e as manifestações de protesto que se deram desde então, reacendem um debate importante, porém, muito menos presente no Brasil: o racismo por parte dos policiais.

Um ponto interessante que é preciso destacar é o fato de que, diferente do que ocorre nos EUA, onde policiais brancos assassinam homens negros, no Brasil, os policiais que matam negros, em sua imensa maioria, são negros também. Outra diferença é que lá, uma morte de um negro gera protestos, enquanto aqui, milhares de negros são assassinados por ano sem ninguém se quer tomar conhecimento.

Para entendermos as razões disso, precisamos, obviamente trazer para a discussão as diferenças entre as histórias dos dois países e sua relação com o racismo, que vem desde a abolição. O sociólogo brasileiro Oracy Nogueira, em seu brilhante texto chamado “Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem”, em que ele trata das diferenças entre o racismo brasileiro e o norte-americano, nos ajuda a lançar luz sobre essa questão.

Primeiramente, vamos entender essa diferença. O autor explica, após ter realizado pesquisas nos Estados Unidos, que o preconceito racial existente naquele país é o que se pode chamar “de origem”, ou seja, se dá pela descendência étnica, já o que existe no Brasil, é o que se pode chamar de preconceito racial “de marca”, tendo em vista que, aqui, o preconceito é exercido de acordo com o fenótipo, isto é, pelos traços físicos do indivíduo. É por isso que aqui, os pretos sofrem mais preconceito e discriminação que os pardos. E, indivíduos que sempre foram tratados como brancos no Brasil podem vir a sofrer discriminação nos EUA.

Parece uma questão simples, porém, essa diferença trouxe e traz consequências de dimensões gigantescas para a nossa convivência social e, principalmente, para o enfrentamento do racismo. Primeiro, que, como bem afirma Nogueira (2006: 291), aqui, “o próprio reconhecimento do preconceito tem dado margem a uma controvérsia difícil de se superar”.

No Brasil, construiu-se a ideia fantasiosa de que vivemos em uma harmonia racial pelo fato de o país ter sido formado por índios, negros e brancos. Em razão disso, entende-se que não temos preconceito. Mas, isso não é verdade.

Segundo Oracy, os diferentes tipos de racismo trazem efeitos na sociedade e, principalmente, sobre os grupos discriminados. Por exemplo, de acordo com o fato de o preconceito ser de origem ou de marca, nós podemos entender as formas de manifestação política e a afirmação da identidade racial. “Onde o preconceito é de marca, a consciência da discriminação tende a ser intermitente; onde é de origem, tende a ser contínua” (NOGUEIRA, 2006: 291). Por isso que não vemos manifestações aqui, enquanto lá, elas são imediatas a cada ato racista.

No Brasil, em razão desse preconceito de marca e do mito da democracia racial (tese vendida pelo antropólogo Gilberto Freyre), a construção da identidade do negro foi dificultada. E a escravidão deixou marcas profundas, tanto quanto nos EUA, porém, lá, além de ter acabado antes e de ter havido uma guerra civil para a sua abolição, coisa que não houve nestas terras, o racismo norte-americano é direto e formal, segundo o antropólogo Roberto DaMatta (1986), enquanto, no Brasil, é velado, parecendo sempre que não existe, mas está mascarado.

Desde que os negros “fiquem em seu lugar”, ele não se manifesta. Havendo assim uma naturalização do lugar do negro na sociedade brasileira, que distingue quem pode e quem não pode ter acesso a certos lugares, certas posições sociais. Mesmo que a lei preveja igualdade a todos os cidadãos, na prática, isso não acontece.

Por isso, continuamos assistindo a cenas de policiais negros matando homens negros nas favelas das grandes cidades, matando adolescentes, como o João Pedro e, para nós, continua a ser “natural”. Sem causar estranhamento. Do mesmo modo que foi um policial negro que atirou e matou o sequestrador negro do ônibus no episódio da ponte Rio-Niterói no ano passado.

Quiçá a explicação disso possa estar em nosso passado escravocrata, que ecoa em nosso presente como um sistema de casa-grande e senzala que ainda se reproduz por meio da violência, da desigualdade, das mortes brutais cometidas pela polícia a mando do Estado, reproduzindo assim o racismo institucional e mantendo a estrutura racista, ou seja, o racismo nosso de cada dia.

Por isso, é que encontramos comportamentos de senhores de escravos (a elite brasileira), capatazes (classe média), capitães do mato (no caso, o policial que mata a mando do Estado que está nas mãos da classe dominante – elite e classe média) e escravos (aqueles que se encontram na base da pirâmide).

Essa situação só vai mudar no momento em que nos conhecermos, tomarmos consciência da nossa história e da nossa realidade, e quisermos então mudá-la!

(Publicado em 04 de junho de 2020 no Jornal O Tempo, Minas Gerais)

Vera Kalsing
Enviado por Vera Kalsing em 26/05/2021
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