NO MEIO DO CAMINHO TEM UMA PEDRA...CRACK

 

  Na década de 1980 a praça da Sé, no centro da capital de São Paulo, já era conhecida como o principal reduto do morador de rua, o porto seguro do menor abandonado, a maioria dependente de maconha, éter e cola de sapateiro. Em 1989, início da gestão populista da prefeita Luiza Erundina, incentivados por promessas demagógicas, o número de moradores da praça triplicou. No inverno gélido daquele ano, me deparei com meia dúzia de garotos com tremores, revirando os olhos, uma espécie de transe, alternando entre prazer e alucinação. O que mais me chamou atenção foi um cachimbo artesanal entre os dedos de um deles. Eu me aproximei de um posto policial, localizado na praça e indaguei ao plantonista o motivo daquela convulsão coletiva e ele me respondeu com conhecimento de causa: "É a raspa da canela do capeta que está invadindo São Paulo". Fiquei sem entender nada, me pareceu mais um jargão policial, e ele sacando minha ignorância, completou: " É o crack invadindo São Paulo, meu senhor, uma nova droga vinda dos Estados Unidos. A polícia, amordaçada pelo tal dos direitos humanos e do Estatuto da Criança e do Adolescente, não pode nem se aproximar desses dependentes químicos".
  Perplexo e impressinado com o que testemunhei, por curiosidade fui buscar mais informações a respeito dessa desconhecida droga de efeito devastador. Devorando jornais e revistas e garimpando nos sebos do centro da cidade, aprendi que se tratava de um subproduto da cocaína em forma de pedra feita para fumar num cachimbo; também fiquei sabendo que traficantes gananciosos misturam a droga com outras substâncias, como bicarbonato de sódio, cimento, gesso e querosene, e que, ao ser fumada, atinge os pulmões e chega ao cérebro em poucos segundos.
  O morador de rua  dependente químico é antes de tudo um excluído dos excluídos. Ninguém vai morar na rua para praticar esportes; algo mais grave aconteceu com esse indivíduo, e a miséria, o descontrole emocional e a rejeição  social fazem da droga um muro de arrimo para esse dacaído. Quando ele se torna um problema familiar e um fantasma para o Estado, é adotado pelo crack, que passa ser a pedra fundamental do seu afundamento.
  As autoridadas governamentais nada fazem para impedir o avanço da maldita pedra, fecharam os olhos nesses 28 anos, e de pedra em pedra formou-se a cracolândia, cemitério de zumbis enterrados vivos, bem no centro de São Paulo. Para os governantes populistas, demagogos, sai mais barato manter esses zumbis vagando pelas ruas e praças da cidade, que mantê-los assistidos com dignidade, sob os cuidados do Estado.
  Noventa por cento dos frequentadores da cracolândia moram nas ruas; mais da metade recebeu tratamento paliativo sem êxito algum.
  O efeito do crack é devastador: ele produz dependência química maior do que a cocaína e ainda não há tratamento  ou remédios que impeçam o dependente de ter recaídas. Os especialistas afirmam que ele só consegue sair do crack quando percebe que está muito doente e  precisa se tratar.  Em outras palavras,o dependente só dá um passo à frente quando  sabe que precisa de ajuda. Um dia ele pode se livrar da maldita pedra, mas vai permanecer dependente a vida toda. O pesadelo do crack não tem cura, a única saída é não entrar nele, ou seja, evitar a primeira pedra.
  Se nos anos 1980 as autoridades omissas tivessem comprado a briga com seriedade, combatendo com veemência a entrada da  pedra do diabo, impedindo o traficante de comercializar essa bomba de efeito instantâneo, muito provavelmente não existiriam cracolândias nas principais cidades do país.
  Jogar a polícia pra cima desses desvalidos com cassetetes e bombas de efeito moral, prendendo meia dúzia de "aviãozinhos", não irá resolver o problema. O mínimo que pode acontecer são esses zumbis fissurados, desamparados, espalhados pela cidade, formarem novos grupos, outras células, novas cracolândias. Ao invés de uma, haverá mútiplas cracolândias nos arredores.

  O indivíduo esquelético, dentes corroídos, curubento, piolhento, fedendo a mijo, não atrai políticos fora do período eleitoral. Pegar o  dependente químico e jogar para debaixo do tapete só camufla o problema, causando caos generalizado e criando novos problemas para o cidadão contribuinte que paga seus impostos,  que custam os olhos da cara.
  O dependente químico é um doente em potencial e necessita de atendimento em longo prazo, nas diversas áreas afetadas: social, familiar e mental, e isso bem longe dos espertalhões e oportunistas de plantão!  O  dependente precisa ser resgatado, mesmo contra a sua vontade, e ser reincluído  na sociedade.
  Nós, hipócritas, estamos pouco nos lixando para a cracolândia instalada na rua do outro. Só levaremos o problema a sério quando o Brasil estiver infestado de craqueiros, com uma cracolândia fincada em cada bairro, em cada rua do país. Na maioria das cidades, a maldita pedra já impera.

São Paulo, 28 de maio de 2017
Autor Benedito Morais de Carvalho (Benê)