FHC, Raimundo Nonato e a meritocracia
Dois mil e vinte e um é, a meu ver, um excelente ano para se discutir a meritocracia – tese amplamente aceita segundo a qual todos os indivíduos podem alcançar qualquer nível social e econômico, bastando para tanto que se esforcem suficientemente. Isso porque este ano Fernando Henrique Cardoso e Raimundo Nonato de Queiroz completam 90 anos de vida. Os dois são de 1931.
FHC nasceu no Rio de Janeiro. No litoral, portanto. Onde desembarcava gente do mundo todo, idiomas, novidades, tecnologias, livros, conhecimento. Onde estava o poder político e econômico. Onde havia professores, escolas, faculdades, teatros, cinemas, médicos, dentistas e hospitais. Onde circulavam as oportunidades. Oriundo de uma tradicional família de militares e políticos do Império, Fernando teve bisavô capitão/deputado/senador e avô general de brigada. Já seu papai foi general de brigada e deputado federal. “Queria que os filhos tivessem como ele uma grande curiosidade intelectual”, diz Fernando Henrique sobre o pai. A mãe, embora não ocupasse cargo público, era certamente letrada.
Em 1940, se transferiram para São Paulo. O garoto estudou em colégios particulares da capital, onde circulavam as oportunidades, até ingressar no curso de Ciências Sociais da USP. Não precisou largar os livros para trabalhar e ajudar a pequena e abastada família de 3 filhos. Foi aluno de Roger Bastide, Florestan Fernandes e flertou com Claude Lévi-Strauss, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Tornou-se professor universitário.
No início da ditadura, FHC se exilou no Chile de onde partiu para a França. Voltando ao Brasil, ingressou na vida política.
Foi presidente da República.
Raimundo Nonato nasceu em Serrinha dos Pintos, no interior do interior do Rio Grande do Norte, a 360 km de Natal, onde não havia professores, escolas, faculdades, teatros, cinemas, médicos, dentistas e hospitais. Lá, a energia elétrica só chegou em 1996. Oriundo de uma família de agricultores pobres e analfabetos, como eram praticamente todos os moradores do lugar, Raimundo aprendeu a ler e a escrever o nome no Mobral, já homem feito. Antes disso, seus livros foram o cabo da enxada e da foice. Não chegou a conhecer o litoral, onde circulavam as oportunidades. Jamais viu o mar. Começou a trabalhar duro na roça ainda criança para ajudar no sustento da numerosa e iletrada família de 11 filhos. “Quase me mata na peia”, diz Raimundo sobre o pai.
Depois de 50 anos vividos naquelas condições, de pau-de-arara, Raimundo Nonato partiu para o interior do Mato Grosso. Em 1983, chegou a Brasília onde trabalhou inicialmente de vigia noturno nas mansões do Lago Sul. Hoje é vigilante aposentado.
Não foi presidente da República.
Porque não quis, dizem os meritocratas.