ÁGUA AINDA É ESMOLA
ÁGUA AINDA É ESMOLA
Manoel Belarmino
Nas tardes, o meu vício de escrever aumenta. E como um sertanejo, que, na alma e na consciência, carrego marcas das cicatrizes dos sofrimentos e das humilhações das politicagens da indústria das secas, recordações me passam na memória como filmes. E recordo minha juventude de trabalhador de alugado nas fazendas de Bento Lima; eu trabalhava uma semana inteira no alugado para ganhar o que dava apenas para comprar cinco quilos de carne com osso.
Quantas noites o sono secava! Às vezes trêmulo de sono e do excesso de cansaço. Como dormi pouco! Eu teria que enfrentar a semiescravidão e o analfabetismo. Só havia duas opções: "sofrer ou morrer". Não sei como escapei.
O que vale acumular bens à custa da exploração de muitas pessoas? E eu olhava o sertão bonito com uma imensidão de terras e água de sobra no rio Velho Chico e das trovoadas. "Ah, se a terra e água criadas por Deus também fossem minha, eu não passaria mais fome; eu não migraria" (Gogó). Não tive a necessidade de ler Karl Marx. Li poucos livros. Mas li muito o maior livro do mundo: a Natureza. Li cada capítulo. O céu, a terra, o povo, o jeito de o povo viver. A fé.
"Olhando o sertão bonito. E as águas que ele tem. E as terras que ele tem. Então eu pergunto a Deus: por que tanta terra em tão poucas mãos e eu como filho de Deus, não tenho nem terra, nem água, nem pão?” (Gogó). A letra da música do teólogo Gogó retrata bem a minha vivência naqueles tempos. A luta pelo estudo. A luta para pensar, mesmo nas noites de cansaço que intercalavam o trabalho semiescravo e a noite da escola. A luta pelo acesso a comida e a água. A luta pelo aceso a terra.
Hoje a terra já é minha, mas a água ainda não é minha.
Água aqui ainda é esmola; e é distribuída como se estivéssemos em guerra. A água chega a vinte litros por pessoa, sob as ordens do Exército Brasileiro.
"Dar esmola, seu doutor, para o homem que é são, ou lhe mata de vergonha, ou vicia o cidadão” (Zé Dantas).