Trabalho Compulsório no Egito Antigo
Conforme Cardoso (2003), as estruturas socioeconômicas egípcias eram fortemente marcadas por um Estado burocrático. A maior parte dos excedentes (agrícolas e de outros tipos) produzidos no país era concentrada pelo governo faraônico e pelos templos – sendo estes, de fato, parte integrante do aparelho de Estado – para posterior redistribuição parcial. Desde o Reino Antigo houve nessa civilização um tipo de propriedade privada – mesmo não sendo da forma como a compreendemos hoje –, mas a forte centralização estatal foi quase sempre dominante.
Discutindo a questão do trabalho compulsório, Cardoso levanta uma interessante questão: como diferenciar um trabalhador livre de um escravo no Egito Antigo em termos econômico-sociais, e não meramente jurídicos? Ele aponta como exemplo dessa dificuldade a instituição da corveia real. Por determinados períodos, homens livres eram obrigados a trabalhar para o Estado em funções como conserto de diques e canais de irrigação, tarefas agrícolas, construções, etc. Ora, Cardoso pergunta: “será possível considerar como livres, no pleno sentido da palavra, homens e mulheres que periodicamente eram fechados numa prisão e forçados a trabalhar, recebendo em troca apenas uma parca alimentação?”
Outro exemplo curioso de “trabalho livre” era o de construtores de tumbas dos faraós. Conforme Cardoso, eles recebiam relativamente bem por seu trabalho – de modo que deixaram para si mesmos belas tumbas decoradas. Suas casas não eram tão grandes, mas razoavelmente confortáveis para não-nobres, formando povoados compactos. Entretanto, embora tivessem uma situação econômica privilegiada – alguns eram donos de campos, escravos e ouro –, viviam em verdadeiros povoados-prisões, cercados de muralhas com uma só via de ingresso e patrulhados por guardas que restringiam muito sua liberdade.
A maior parte da população egípcia era camponesa. Alguns eram pequenos proprietários ou arrendatários, mas a maioria trabalhava na propriedade do Estado ou de particulares. Como eles eram submetidos à corveia do Estado e ao poder despótico de administradores das terras reais ou dos templos, ou de proprietários de terras, Cardoso defende que os camponeses do Egito antigo não podem ser considerados exatamente trabalhadores livres, embora não fossem escravos ou servos no sentido medieval. Sua remuneração principal parece ter consistido do direito, na época das colheitas, de tomarem para si mesmos durante um dia, depois de vários colhendo para o dono da terra, aquilo que pudessem, além de receberem rações de alimento.
A opressão dos camponeses incluía castigo físico. Pimentel et al. (2018) cita como exemplo disso uma cena pintada na Tumba de Menna, na XVIII Dinastia, em que um trabalhador sob a supervisão de Menna é golpeado com uma vara, enquanto um terceiro homem atrás do castigado levanta os braços, implorando por misericórdia. Também na literatura existem memórias de espancamento de camponeses, descrevendo suas vidas como permeadas não apenas de cansaço, incerteza, privações e infortúnios, mas ainda da violência exercida sobre eles pelos coletores de impostos. E se os camponeses de alguma maneira tentassem evadir de suas obrigações com a realeza, podiam ser condenados à escravidão hereditária (LOPES, 2020).
Conforme Santos (2017), até os mortos estavam obrigados a prestar serviço após sua partida desse mundo, já que, para os egípcios, a vida no plano terreno era uma extensão da vida no além – e não o contrário. Por isso, nas tumbas dos Faraós e membros de sua família, bem como de particulares da elite do Egito Antigo, eram colocadas estatuetas para realizar as tarefas que o morto eventualmente fosse convocado a fazer.
CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. O trabalho compulsório na antiguidade: ensaio introdutório e coletânea de fontes primárias. Graal, 2003.
LOPES, Julio Aurelio Vianna. O Agon Sistêmico da Antiguidade. 2020. Disponível em: <http://www.casaruibarbosa.gov.br/arquivos/file/artigos/artigo_8_secao_livre_Julio_Aurelio_Vianna_fenix_jan_jun_2020.pdf>
PIMENTEL, Maria Cristina et al. Violence in the Ancient and Medieval Worlds. 2018. Disponível em: <https://core.ac.uk/download/pdf/196575526.pdf>.
SANTOS, Danielle Guedes. Uma Análise Sobre as Estatuetas Funerárias do Reino
Novo (c. 1550 – 1070 a.c). In: Revista Digital Simonsen, Nº 7, Agosto. 2017. Disponível em: <http://www.simonsen.br/revista-digital/wp-content/uploads/2017/08/edicao-perfeita2.pdf#page=51>.