NOS BRAÇOS DA ETERNIDADE

 
Nasceu como todo filho de homem. Pequeno, frágil, sem nome. Pequeno filete de água, expulso de uma fenda na montanha. Nasceu no alto serra, rolou de alturas insondáveis, cavou vales profundos, contornou os mais sólidos penedos, pulou de altos barrancos, formou lagoas calmas e plácidas. Por todo o caminho que fez, do alto da serra até a imensa planície marítima, viveu aventuras inesquecíveis. Encarou montanhas e venceu-as, desviando-se estrategicamente delas; foi obstado por muitos obstáculos e venceu-os, contornando-os. Em lugares onde o nível da terra era baixo e ele não podia correr, parou, concentrou suas forças, elevou seu próprio nível e saiu por cima. Onde as alturas eram impossíveis de vencer, ele sempre encontrava um caminho por baixo, ou pelos lados, e foi sempre em frente.  
Ele era um rio e todo rio tem um objetivo, que é chegar ao mar. Não importa como. Mas, em sua trajetória, quantas vilas e cidades não abastece?  Quanto solo não fertiliza, quanta horta não rega, para que os homens possam tirar da terra o seu sustento? E sobre seu dorso, quantos barcos não deslizam, aproveitando a força da sua corrente, ou a profundeza de suas águas. E na intimidade de suas águas não deixa ele que ali se hospede e viva uma imensa variedade de vida, que também serve de sustento para os homens?
O homem senta-se na beira do rio e medita. Sua vida é como um rio. Nasce pequeno e frágil. Vence montanhas, contorna obstáculos, cava vales e salta de enormes alturas. Atravessa campos e florestas. Derruba  e ergue civilizações.
Só pode andar para frente. E um dia terá que atirar-se nos braços da eternidade, como o rio no oceano. Deixar de ser um rio para se tornar-se parte de uma imensa massa de água, onde tudo se confunde e nada mais se distingue.
Dizem que todo rio tem uma alma. E que sua alma tem medo quando se defronta com o oceano, encarando a possibilidade de desaparecer para sempre. Como o homem quando se defronta com a morte. Mas o rio sabe que não pode voltar. Que ele tem que entrar no oceano e se misturar à imensa massa líquida. Por que ele e seus irmãos é que alimentam essa massa e é ela que garante a perenidade da vida no planeta.
O homem então compreende que a vida se alimenta da morte. Perde a individualidade na imensidão da eternidade para garantir a sobrevivência da coletividade. E assim o homem nasce e morre todos os dias. Mas nunca será extinto.
Assim são todos os homens. Rios que nascem todos os dias. Rios que se diluem nos braços da eternidade. Nascemos e morremos diariamente. Por isso somos eternos.
Homenagem ao jornalista Alexandre Barreira, falecido em 27-09-2020.