Maria Helena

Eu tive um amigo, falecido há um ano e pouco, que possuía um espírito rico e refinado. Para ele tudo estava bom: qual é teu partido? Ele respondeu: “E o seu, qual é?” O interlocutor respondeu prontamente: “Arena!”. E ele completou: “Também é o meu!”. Depois, fomos perguntar-lhe: “És Arena, agora?”. Com sua calma ele filosofou: “O ser humano está sempre buscando uma polêmica para provar suas teses e antíteses. Eu respondo o que eles querem ouvir, e acaba a conversa, esvazia a discussão”.

Esse amigo tinha dois pequenos defeitos: primeiro, era metido a goleiro; tomava cada frango! Depois, embora meio desafinado, gostava de cantar. O pior é que ele cantava nos lugares mais descabidos, como no trabalho, no ônibus, em velórios, durante partidas de futebol e em desfiles de cães amestrados.

No abrir a porta ele já ensaiava: “Noite alta, céu risonho, a quietude é quase um sonho...”. Eu nunca vi alguém que gostasse tanto de cantar, fosse chorinhos do Ciro Monteiro as antigas valsas do Orlando Silva. a Marselhesa e outros jurássicos. Embora fosse bom companheiro, o pessoal evitava sair com ele, pois em qualquer lugar que fosse, quando menos se esperava, lá estava ele, no meio de uma roda-de-samba.

Dizem, eu nunca vi, que ele chegava em um lugar e, cinco minutos depois, perguntava: “Vocês querem que eu cante?” Uma vez fomos jantar na casa dele. Prevendo a cantoria, assim que a esposa dele serviu o delicioso pudim de café, especialidade dela, cada um se escusou por um motivo, saindo de fininho.

Chateado, ele bradou: “Como é que vocês vão embora? Eu ainda nem cantei...” Outra vez, o pessoal foi janta com ele e não se escapou. Depois de uma comida encorpada (parece que ensopado de pintado), com muitos uísques e cervejas, ele decidiu: “Vamos fazer uma serenata para o João!”. E se foram noite afora, cheios de razão. Na verdade, ele queria ir a uma boate. Ficaram por lá até às cinco da manhã.

Quase clareando, os amigos vieram trazê-lo em casa, pois ele não se agüentava em pé. Totalmente chuco, comentava: “Dancei com uma morena, que pele! A boca tinha cheiro de malva, os olhos eram verdes... se chamava Maria Helena!”.

Sabem como é bêbado: disse isso aos berros. Como já estavam na porta da casa, a esposa ouviu e, colocando um lustroso chambre de cetim surrado, veio perguntar: “Quem é Maria Helena?”.

Mesmo tonto ele não se apertou. Olhou para o violeiro e pediu: “Me dá um sol-maior!”. E lascou: “Maria Helena és tu, a minha inspiração...”.

Antônio Mesquita Galvão
Enviado por Antônio Mesquita Galvão em 11/11/2005
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