A marca da farinha
Nas colônias interioranas do Rio Grande não havia confecção. O máximo que existia, nas vendas, era o tecido a metro. Esse tecido era grosseiro, um riscado, áspero e desajeitado. As mulheres, além do trabalho normal, tinham agregado a si o mister de fazer as roupas da família, naquelas velhas máquinas Singer-Ehgelwart, vindas da Europa.
As máquinas não tinham o kabinet onde ficavam os pedais. Eram manuais mesmo; rodadas a mão. Pois o Fritz gostava, todos os dias, depois de cumprir sua faina campesina diária, de ir à venda do Feltes, para jogar cartas.
Lá tomavam cachaça ou cerveja sem gelo, comiam torresmo, comentavam as novidades e falavam da vida alheia. A novidade daqueles dias era o aparecimento de uma farinha de trigo industrializada. Agora não era preciso mais comprar o trigo em espiga, debulhar e moer no pilão. A farinha, apresentada em sacos de sessenta quilos, já vinha pronta, fina e branquinha como o colarinho do pastor, nos cultos de domingo.
A marca da farinha exemplificava o sentimento daquela gente, com a chegada de mais essa modernidade: Felicidade. Além do conteúdo, encantava o povo as mil-e-uma utilidades dos alvos sacos de algodão que embalavam a farinha. A culinária local enriqueceu-se. Com a farinha refinada novos pratos foram acrescidos à culinária teuto-brasileira, para fugir um pouco dos indefectíveis klösse, que o pessoal não aturava mais de tanta repetição.
Mas, como dizia, o Fritz passava as tardes na carpeta, esfregando-se nos ásperos bancos da venda do Feltes. Com o tempo, pelo uso, suas calças foram ficando lustrosas nas partes posteriores, a ponto de valer-lhe um apelido, que descontada a tradução, eqüivalia a “fundilho de porcelana”.
Em certas épocas de dificuldades, quando não vinha tecido da capital, as donas de casa tinham de improvisar remendos com o que tivesse. E o saco da farinha era uma mão-na-roda. Alguns dias depois, morreu um vizinho. Chovia. O povo, solidário como sempre, dispôs-se a levar o finado ao cemitério, que distava umas três léguas da vila. Fritz ajudou a carregar o defunto.
O pessoal que ia à frente do caixão, contritamente rezava: “Pai Nosso que estas nos céus, santificado o teu nome, venha o teu Reino...”. O pessoal que vinha atrás, ria a bandeiras despregadas. Qual seria a causa da galhofa?
Na bunda do Fritz, destacando-se da calça marrom com riscos pretos, brilhava um remendo, onde se lia: “Felicidade”