O Cristo marxista
Era uma noite de decisão no Estádio Olímpico. O Grêmio só iria adiante na Libertadores de América se fizesse três gols no Cruzeiro de Minas. Venceu a partida mas não conseguiu fazer todos os gols necessários.
Na saída, esbarrei com um bando de garotos, da “Torcida Jovem” que, apesar da desclassificação, faziam um grande alarido, berrando o “Ah! eu sou gaúcho!”. Um deles, de uns quinze anos, portava uma enorme bandeira com as cores do clube, tendo no centro o rosto de Che Guevara, com a clássica boina guerrilheira, na cor azul, é claro.
“Quem é esse aí?” perguntei, me fazendo de desentendido. O menino me olhou fixo, como que descrente da minha ignorância, e disse: “Esse é o Che, o maior guerrilheiro das Américas. É um libertador...”.
Cheguei no carro juntando idéias para uma reflexão sociopolítica. Havia dois dados relevantes: Aquele garoto que, quando nasceu fazia quinze anos que Ernesto “Che” Guevara tinha morrido... e, quem contou a ele as lutas do médico argentino que se tornou guerrilheiro?
Na mesma semana, os jornais abriram grandes manchetes sobre os trinta anos da morte de Guevara nas selvas da Bolívia. Olhando a foto de seu cadáver, a gente não pode deixar de fazer uma ligação com a figura de Cristo: recostado, olhos semi-cerradps, barba em desalinho e lábios entreabertos, numa fisionomia serena.
Há, curiosamente, no peito, perto do coração, um ferimento perfurante. A ilação não foi só minha. O jornalista Tomáz Martinez, do La Nación, de Buenos Aires, autor de “Santa Evita”, referiu-se ao que ele chama de Cristo-Comunista, como um dos maiores ícones ideológicos da América Latina.
Recordou que, em 1968, no auge da repressão, discursando aos jovens, em Paris, Dom Helder Câmara, Arcebispo de Olinda e Recife, afirmou que “... só uma classe de homens, aqueles de visão planetária e de coração universal, poderão consumar o milagre de apagar as desigualdades entre raças, sexos e classes, entre submissos e insubmissos, ilustrados e iletrados. Só poderão consegui-lo aqueles que sejam violentos como os profetas, justiceiros como Guevara, verdadeiros como Cristo”.
Em "Compañero", uma biografia recente, autoria do escritor Jorge Castañeda, ele entrevista o alemão Henrich Böll, Prêmio Nobel de Literatura, que se refere à última refeição de Guevara cativo. Poucas horas antes de sua execução sumária, numa analogia com a cruz, quando o guerrilheiro teria recusado uma sopa oferecida, por causa do vinagre.
A verdade é que a foto de Guevara morto, inexplicavelmente, traz consigo um ponderável apelo místico. Parece fazer a separação entre a brutalidade do autoritarismo de todos os tempos e os eternos anseios libertários do homem novo.
“Com Guevara, afirma Böll, todos nos libertamos, e asseguramos o direito de questionar a autoridade e a dissentir”.
Ideologias à parte, a verdade é que Che Guevara passou para a galeria dos mitos, junto com Zapata, Sandino, Vargas, Evita, Neruda, Gaitán, Borges e tantos outros, em um continente tão carente de verdadeiros líderes.
Os anos sessenta, encarnados da rebeldia de Che, deixaram uma herança irreversível de liberdade em todos os segmentos do mundo inteiro. Não se faz julgamentos históricos, ainda mais de idealistas ou de mitos populares, sob pena de erro ou retratação. Felizmente a política não é o tribunal onde se julga a história.
O comunismo acabou. O marxismo mostrou-se insuficiente para a complexidade da vida humana, mas a figura de Che Guevara não cessa de encarnar o desejo humano, seja de libertação, seja de mudança. O fato é que, trinta anos depois, para contrariedade de alguns, Guevara continua vivo. Como que ressurrecto.
Talvez por isso, o jovem torcedor tenha ficado tão espantado com minha pergunta.