Lições da História
Sai nos noticiários : atual mandatário turco Recep Tayyip Erdogan anuncia que um dos grandes patrimônios culturais da humanidade – A Basílica de Santa Sophia – vai deixar de ser um museu para se tornar ( ou retornar a ser ) uma Mesquita .
Se para o ocidente , e parte da cristandade , isso possa parecer soar um ultraje ou um contrassenso , o outro lado da contenda pode ver isso como os devidos pingos nos “is” sendo colocados onde de direito deveriam estar . Direito esse que remontaria ao ano de 1453 quando a capital do então império bizantino – Constantinopla ( homenagem ao Imperador Romano Constantino ) – caiu em poder dos turcos otomanos liderados por Mehmet II. Ali estava Hagya Sophia desde o século VI , bela , gigante , imponente e emblemática em seu significado de Santa Sabedoria , o bastião oriental do Cristianismo às bandas da Ásia Menor sob o cognome de “ Império Romano do Oriente “ , ou Império Bizantino . Ali também nasceria o primeiro grande cisma teológico dessa nova fé , que assim se antagonizava com a sua coirmã ocidental baseada em Roma , surgiriam então as tantas vertentes ortodoxas com seus ritos e patriarcados ( Grego, Copta , Armênio , Sérvio , Russo , Albanês . . . ) , e até hoje assim seguem seus caminhos distintos.
Quando os turcos , advindos das estepes da Ásia Central , adentraram por aquela região, já encontraram pelo caminho uma outra civilização nascente e expansionista em sua fé , a árabe muçulmana, rápido se adotariam como entusiasmados propagadores . Que melhor motivo para começarem a erguer um formidável império que se estenderia da Ásia Central englobando a Ásia Menor , o Oriente Médio , parte dos Bálcãs europeu ( região da antiga Iugoslávia e Albânia ) , a Grécia , Chipre e boa parte do norte da África , além de incursões pela Europa Central , cercando Viena ( Áustria ) e Budapeste ( Hungria ) .
Na metade do século XV , Constantinopla agonizava sob o cerco otomano , era uma questão de tempo para uma página da história virar , cairia naquele ano de 1453 . Para a chamada “ História Universal “ que aprendemos nos bancos escolares significava a passagem da Idade Média para a Idade Moderna . Mas em termos locais bem poderia ter sido nada mais que uma justa “consolidação “ de um épico de tantas conquistas, um símbolo que faltava e agora estava sendo incorporado . É quando aquela imponente “Hagya Sophia “ , o ícone de Bizâncio e do findo Império Romano do Oriente , ganharia quatro minaretes e um crescente em sua imensa cúpula , seu rico interior sofreria arranhões irreparáveis de uma intolerância típica daqueles tempos .
Os ícones dariam lugar aos sinuosos e elegantes caracteres árabes que agora anunciariam as boas novas do mensageiro e profeta de Allah . O Império Otomano consolidava-se como um grande e bem sucedido experimento de Estado Islâmico estável e institucionalizado onde a figura do Sultão ,embora simbolizasse um poder absoluto , tinha espaço para uma relativa delegação de poderes para administrar um grande império e suas províncias .
E dando um salto no tempo , estamos agora entre os séculos XIX e início dos XX . O Império Otomano já não é mais o mesmo e começa a perder terreno diante das potencias cristãs europeias , principalmente para a França e Inglaterra ( elas estão sempre em todas ) . Em pouco espaço de tempo verá seu vasto território encolher , perdendo posições no norte da África , na Grécia , na Ásia Central , nos Bálcãs e sul da Rússia . Quando vem a I Guerra Mundial ( 1914-1918) e suas tantas estratégias de alianças , a Turquia ficaria ao lado da Alemanha e do Império Austro-Húngaro contra a outra aliança , a de França , Inglaterra e Império Russo . Bem sabe-se qual foi o lado derrotado e as consequências impostas pelos vencedores aos vencidos , o desmembramento daqueles impérios . Em particular o Império Otomano perderia todas as províncias do então Oriente Médio que seriam administradas agora umas por franceses e outras por ingleses , incluso aí o controle da Palestina e a Terra Santa ( Jerusalém dos cristãos e judeus , Al Quds dos muçulmanos ), no Cáucaso perderia a Armênia e outras províncias para a nascente revolução soviética.
O sultanato ainda sobreviveria com aparelhos até 1922 quando oficiais do exército turco, dentre eles se destacando Mustafá Kemal Pasha , os desligaram sem maiores resistências . Nascia uma pretensa renovada Turquia como sendo um Estado laico e moderno , livre dos escombros medievais da velha ordem . Nascia também o mito Ataturk ( pai dos turcos ) que aquele líder da revolução tratou de incorporar para si mediante a força de um culto à personalidade que se impôs de “ livre e espontânea pressão “ no universo imaginário turco . As transformações foram de larga amplitude e caíram como um raio sobre toda a sociedade e as estruturas do Estado , seria um experimento inédito dentro das quatro linhas do mundo muçulmano , e ao mesmo tempo um tabu que se quebrava : a secularização de uma sociedade dentro do Islã .
De uma hora à outra , o que se considerava sacralizado na vida diária deixou de sê-lo : vestimentas , costumes , tradições , família , relacionamentos , fé . . . , tudo seria agora passível de discussão e até posto em xeque.
Para a nova doutrina “ Kemalista “ a tradição , fé e costumes impunham restrições à universalidade do conhecimento e do ser humano , incompatíveis com as diretrizes de um mundo em evolução permanente. Valores como a educação , cultura e a ciência não poderiam ser reféns de sectarismos dogmáticos e de “ certezas “ presumidamente eternas, cabendo portanto ao Estado secular administra-los em prol de todos .
A moderna Turquia saída dessa revolução , embora de índole autoritária, sob alguns aspectos foi um país que conseguiu inserir-se dentro de um “aceitável” contexto ocidental europeizado , principalmente nos costumes : véus abolidos , chapéus no lugar de turbantes e do fez , vestimentas ocidentais no lugar da indumentária islâmica, independência e direito de voto às mulheres ; tudo bem diferente dos outros Estados que lhe eram vizinhos . Naqueles tempos de Guerra Fria se tornaria membro efetivo da OTAN e depois da Comunidade Econômica Europeia . Se a geografia lhe situava no que é chamado de Eurásia onde o estreito de Bósforo a deixaria entre dois continentes , assim por dizer , com sua ‘ parte europeia ‘ e com sua ‘ parte asiática’ , não escondia que já se considerava ocidental , afinal foi o escopo daquela revolução de 1922.
Entretanto , e apesar dos esforços , algo a parecia diferenciar e afasta-la daquele contexto , e isso justamente por ter aquele seu caráter turco , tão expresso na etnia , na linguagem e na religião. Isso aquele clube de países de tez branca , de idiomática indo-europeia e principalmente de fé cristã talvez não quisesse suportar , fazia-se de conta .
Temores de um passado nem tão distante assim no subconsciente ? talvez .
Quando Recep Erdogan assumiu o governo a partir de 2014 , tratou de quebrar um pouco aquela dita rigidez secular do Estado Turco . Político hábil e populista tratou de aliar-se a muitos grupos conservadores em costumes e na religião , além do fato de apelar para determinados valores turcos misturando nacionalismo e tradicionalismo . Era um caminho aberto para por em xeque aquele então original desejo ‘ Kemalista ‘ de tornar à todo custo o país “ ocidental e europeu “ em corpo e alma , apesar de tal impossibilidade e de uma oposição envergonhada daqueles europeus em aceita-lo como tal .
Assim sendo , alguma nostalgia daquele passado estava apenas aguardando a sua chance de vir à superfície , tinha recebido a sua injeção de ânimo .
E a emblemática Basílica de Santa Sophia que em 1453 tornou-se Mesquita , e que em 1935 tornar-se-ia um museu , agora retornará Mesquita .
De certa forma , sinalizava-se como resposta clara do que a Turquia não mais queria ser , membro faz de conta de um clube “ ocidental e cristão" que sempre , e disfarçadamente , lhe fez pouco caso .
Lições da história ? talvez !