O mundo cão

Foi em meados dos anos 70, eu ainda garoto, que ouvi pela primeira vez aquelas gozações em cima dos jornais sensacionalistas - na época O Dia era o mais em voga. Diziam: "se espremer, sai sangue". Ríamos muito disso, pois já nos víamos como parte de um grupo da sociedade imune aos apelos da chamada imprensa marrom, apesar de morarmos numa área modesta da cidade.

O que se acreditava é que esses jornais destacavam o que de pior ocorria no mundo para satisfazer os apetites grosseiros da massa ignara, e assim vender boas tiragens. Ou seja, havia por trás da nossa atitude a suposição de que aquelas notícias não eram o espelho da realidade maior, embora desacreditássemos de um mundo paradisíaco. Aquele noticiário configurava simplesmente o que chamávamos de "mundo cão".

Crimes violentos, hediondos, abusos de toda ordem, miséria e, no meio de tudo, mulheres seminuas, compondo um quadro capaz de excitar as mentes mais deturpadas pelo caos em que viviam. Enquanto isso, procurávamos ler os jornais e revistas sérios.

"Roda mundo, roda-gigante, roda moinho, roda pião..." e vejam o que aconteceu: as páginas da imprensa tida hoje como séria lembram em muito os frontispícios dos jornalecos daqueles tempos. O mundo está literalmente sangrando, os crimes violentos são a tônica de grandes e pequenas cidades, inclusive em áreas de alta renda, e a imprensa estampa a toda hora notícias sobre padres pedófilos e fofocas do mundo artístico. No meio da sangueira e dos desastres ecológicos, mulheres seminuas passeiam seus bumbuns malhados e seios de silicone.

A agência Globo Online publicou hoje (quinta) as fotos da coleção de lingerie da Victoria's Secret, com Gisele fazendo um tipo mamãe noel-diaba. Num outro dia, publicou as fotos do desfile da nova coleção da mulher do Beckham, de quem agora não me lembro o nome, com destaque para o beijo de língua entre duas modelos.

Tudo muito chique e excitante, não fosse o contexto violento, que me lembrou o filme Calígula. Uma das mais polêmicas produções do cinema, a fita de Tinto Brass e Bob Guccione mostra um show de perversões patrocinadas pelo mais louco dos imperadores romanos, que mantinha um bizarro caso sexual com sua irmã. Ele era casado com a mais infame das prostitutas; vivia cercado de bajuladores; e tinha também inimigos perigosos, loucos para vê-lo longe do poder, conforme sinopse do Webcine.

Não acredito em mera coincidência. Calígula tratava da decadência do Império Romano, ao passo que o espetáculo da mídia que consumimos diariamente mostra os efeitos da decadência do Império Norte-Americano, com sua máquina de guerra e sua indústria de sangue e pornografia pesada. As imagens das modelos não são "um oásis" em meio ao caos - elas fazem parte do caos. São a metade ambiguamente prazerosa da violência; o equivalente ao orgasmo decorrente do estupro. Não são um estágio avançado da civilização; são a porção sofisticada de um momento de animalização. Erotizam para vender, e vendem a idéia de um mundo dominado por Eros, quando na verdade o poder já foi tomado pór Tânatos há um certo tempo.

Nelson Oliveira
Enviado por Nelson Oliveira em 11/11/2005
Reeditado em 02/06/2006
Código do texto: T69894