Método e estilo narrativo n'As veias abertas da América Latina

     Eduardo Galeano (1998) foi jornalista, editor, escritor. Seus livros marcaram o pensamento crítico latino-americano, a exemplo de As Veias Abertas da América Latina e Memorias del fuego. Seu conhecimento é interdisciplinar, intercultural e voltado para a integração latino-americana desde uma perspectiva dos povos e nações oprimidas. Seus textos, porém, jamais seriam publicados numa revista Qualis A e tampouco seriam qualificados como científicos dentro de uma visão academicista. Dificilmente passariam numa banca de doutorado. Dificilmente pode ser inserido como um referencial teórico da Sociologia, da Ciência Política, da História, da Antropologia, etc. Galeano nem chegou a cursar faculdade. E, com tudo e apesar de tudo isso, longe das classificações mecânicas, sua obra possui um peso teórico e metodológico enorme.

     Pretendo aqui abordar o método e o estilo de narrativa na obra As Veias Abertas da América Latina, publicado em 1970, com o objetivo de demonstrar como Galeano constrói um método inovador de interlocução entre um lado teórico, acadêmico e científico, com um lado subjetivo, imaginário e poético. Ao fazer isso, dá um choque de sensibilidade nos acadêmicos e um choque de realidade nos idealistas.

     Nessa dança de lados e significados, este texto se dividirá também em dois tópicos, um sobre o método de análise social (dialogando com Marx, Mariátegui e os teóricos da dependência) e outro sobre o estilo narrativo que resolvi chamar de narrativa presente da história (misturando um pouco de trabalho da memória, realismo mágico e os diários de viagem de Che Guevara).

     Tudo isso diz respeito a uma mesma época histórica, a mesma época em que o escritor Galeano escrevia essa história. O que faz o presente escritor ao escrever de novo essas coisas? E o que aproveitar da época passado-presente-futuro de “As Veias Abertas” para pensar o presente rumo a um futuro idealizado como construção consciente de uma época melhor?

Recuperar a crítica do imperialismo e da dependência

     Às vezes o óbvio precisa ser dito. Especialmente em um mundo de patas arriba (de pernas pro ar), onde o não óbvio se instala como confusão e legitimação de um estado presente de injustiça. Como dizia Brecht, “desconfiai do mais trivial, na aparência singelo, e examinai, sobretudo, o que parece habitual”. Galeano traz o óbvio quando diz que a América Latina é a região das veias abertas, que tudo tem se acumulado nos distantes centros de poder, desde a colonização, passando por diferentes domínios imperiais. Ao dizer isso, coloca uma tese fundamental para a teoria do imperialismo e os debates das teorias da dependência: “o modo de produção e a estrutura de classes de cada lugar têm sido sucessivamente determinados, de fora, por sua incorporação à engrenagem universal do capitalismo” (p. 14). Ao falar dessa determinação, não esquece das forças internas de dominação: “o bem-estar de classes dominantes – dominantes para dentro, dominadas de fora – é a maldição de nossas multidões, condenadas a uma vida de bestas de carga” (p. 14), e ainda: “as classes dominantes não tinham o menor interesse em diversificar as economias internas, nem de elevar os níveis técnicos e culturais da população: era outra sua função, dentro da engrenagem internacional para a qual atuavam” (p. 42), e assim retoma as análises de Paul Baran, quando este diz que a relação de “colaboração entre o imperialismo e os países dominados se comparam à relação o cavaleiro e o cavalo. No curso de suas exposições, Galeano também se preocupa com o carácter das relações sociais de produção – a articulação entre relações capitalistas, feudais e escravistas dentro de uma estrutura global de acumulação capitalista.

     Qual não é a semelhança com Mariátegui (2010, p. 47), que, ao analisar a formação econômica colonial do Peru, assinala:
 
A mineração, o comércio, os transportes, se encontram nas mãos do capital estrangeiro. Os latifundiários se contentaram em servir como intermediários a esse, na produção de algodão e açúcar. Esse sistema econômico manteve, na agricultura, uma organização semifeudal, que se constitui na maior dificuldade para o desenvolvimento do país.

     Tal linha de argumento leva em conta as forças que travam o desenvolvimento das forças produtivas nos países colonizados – discussão inaugurada por Marx, quando fala dos momentos em que a necessidade de avanço das forças produtivas entra em conflito com as relações sociais de produção existentes. A discussão passa por Lênin e é retomada nas Teses sobre o movimento revolucionário nos países coloniais e semicoloniais, adotadas pelo VI Congresso da Internacional Comunista, em 1928, contemporâneo dos Sete Ensaios de Mariátegui.

     O clássico peruano, assim como o brasileiro Alberto Passos Guimarães, mostram como Espanha e Portugal, na época em que invadiram a América, estavam em intensa luta interna entre forças burguesas e forças feudais, o que marca, na colonização, a tensão entre industrializar ou articular uma estrutura internacional de troca mercantil, tensão entre capital industrial e capital comercial. Prevaleceram as forças de uma nobreza com horror à indústria e a um modelo liberal de capitalismo: “quem se dedicasse a uma atividade industrial perdia automaticamente sua carta de fidalguia” (p. 37). Essa opção cavou sua própria ruína, pois essa estrutura internacional de troca mercantil, aliada às artimanhas do sistema financeiro, levou as Coroas espanhola e portuguesa à forca, arruinadas pelo endividamento e canalizando a riqueza espoliada da América para os centros do capitalismo industrial. “A Espanha tinha a vaca, mas outros tomavam o leite”, diz Galeano, e ainda, ao se referir ao latifúndio açucareiro: “Portugal não se limitou a matar o embrião de sua própria indústria, mas também, de passagem, aniquilou os germes de qualquer tipo de desenvolvimento manufatureiro no Brasil” (p. 66); “da mesma maneira que a prata de Potosí repicava no solo espanhol, o ouro de Minas Gerais só passava de trânsito por Portugal” (p. 67).

     Essa explicação perpassa a tese fundamental d’As Veias Abertas, e que dialoga com a tese de “desenvolvimento do subdesenvolvimento” de Andre Gunder Frank. A contradição de que as regiões mais ricas se tornaram as mais pobres no curso do processo de colonização: “quanto mais cobiçado pelo mercado mundial, maior é a desgraça que um produto traz consigo ao povo latino-americano que, com seu sacrifício, o cria” (p. 73). Por isso a boliviana Potosí da prata é, nos dizeres de uma moradora local “cidade que mais deu ao mundo e a que menos tem” (p. 44). E assim:
 
Potosí, Zacatecas e Ouro Preto caíram de ponta do cimo dos esplendores dos metais preciosos no fundo buraco dos filões vazios, e a ruína foi o destino do pampa chileno, do salitre e da selva amazônica da borracha; o nordeste açucareiro do Brasil, as matas argentinas de quebrachos ou alguns povoados petrolíferos de Maracaibo têm dolorosas razões para crer na mortalidade das fortunas que a natureza outorga e o imperialismo usurpa (p. 14).

     Esse carácter de “maldição” sobre a riqueza do povo latino-americano é a ponte que nos leva à segunda parte deste ensaio, sobre o estilo narrativo de Galeano.

Estilo narrativo

     As Veias Abertas traz elementos de um estilo literário marcante na época em que foi escrito, fazendo lembrar os autores do chamado boom literário. Trata-se do realismo mágico ou fantástico, definido a partir de uma ruptura com a polarização entre o racional e o mágico-espiritual, marcada pelas influências dos povos originários da América e dos povos africanos, formando na América Latina uma entidade cultural “cujos traços da formação étnica e histórica são a tal ponto estranhos aos padrões racionais que se justifica a predicação metafórica do maravilhoso ao real” (CHIAMPI, 2008, p. 35, referindo-se à contribuição de Carpentier).

     Essa identidade entre o objetivo e o subjetivo é percebida na medida em que Galeano articula toda a crítica do imperialismo, acima abordada, ao mesmo tempo em que narra histórias como se estivesse fazendo um diário de viagem, a ponto de que As Veias Abertas, tal como as Notas de Viaje de Che Guevara (2007), se constituam em guias turísticos para os viajantes das profundezas das relações sociais latino-americanas.

     Galeano está sempre caminhando pelas ruas das cidades que foram parte dessa História. Conversa com personagens presentes e vê nas janelas e portas os espectros dos personagens do passado. Mostra que eles continuam ali, confundindo-se com os personagens do presente. O tempo da narrativa se confunde entre presente e passado:
 
Nos velhos socavãos que ainda não estão inundados os mineiros entram, a lâmpada numa mão, os corpos encolhidos, para arrancar o que podem. Prata não tem, nem uma centelha; os espanhóis rasparam os veios até com ancinhos (p. 44).

Sucre conta ainda com uma Torre Eiffel e com seus próprios Arcos do Triunfo; dizem que com as joias de sua Virgem poder-se-ia pagar toda a gigantesca dívida externa da Bolívia. Mas os famosos sinos das igrejas, que em 1809 cantaram com júbilo a emancipação da América, hoje oferecem um som fúnebre (p. 47)

Atualmente, Zacatecas e Guanajuato nem sequer são as cidades mais importantes de suas próprias comarcas. Ambas definham rodeadas pelos esqueletos dos acampamentos da prosperidade mineira. (p. 49)

Os peões partiam as cascas [do cacau] a golpe de facão, juntavam os grãos, carregavam-nos nos carros para que os burros os levassem até os escoadouros, e era preciso cortar cada vez mais matas, abrir novos clarões, conquistar novas terras ao fio do machado e a tiros de fuzil. Nada sabiam os peões dos preços nem dos mercados. (p. 105)

     O passado e o presente se confundem, mostrando que as arcaicas relações sociais e dinâmicas de exploração estão vivas e presentes, não permitindo que o leitor latino-americano se tranquilize com um sentimento de transição, superação do passado, “modernização”. Ao contrário, faz com que o leitor se veja como parte da história e assuma um engajamento para romper com seu próprio passado-presente. Esse estilo poderia ser chamado de narrativa presente da história, marcada por um relato visual com carácter histórico e científico-crítico.

     Quando Ernesto Che Guevara fez, junto com Alberto Granado, sua viagem de moto pela América Latina, esse tipo de descoberta também estava presente. Um momento exemplar do diário é quando relata a conversa com um casal de operários chilenos comunistas, à luz de uma vela numa noite fria e compartilhando mate, pão e queijo:
 
Las facciones contraídas del obrero ponían una nota misteriosa y trágica, en su idioma sencillo y expresivo contaba de sus tres meses de cárcel, de la mujer hambrienta que lo seguía con ejemplar lealtad, de sus hijos, dejados em la casa de un piadoso vecino, de su infructuoso peregrinar en busca de trabajo, de los compañeros misteriosamente desaparecidos, de los que se cuenta que fueron fondeados en el mar. [...] Fue esa una de las veces en que he pasado más frio, pero también, en la que me sentí un poco más hermanado con esta, para mí, extraña especie humana. (GUEVARA, 2007, p. 72)

     A sinceridade do relato é marcante, mostrando uma transformação na visão de mundo do próprio relator. Os famosos Diários de Motocicleta, mostram, na mesma perspectiva de As Veias Abertas, que a “viagem” pela América Latina não é simplesmente uma empreitada turística, mas sim uma viagem no conhecimento de si próprio (conhecendo a si como reflexo daquilo que conhece, conhecendo o povo e reconhecendo-se como parte dele), chegando ao ponto de o sujeito assumir um compromisso ao nível do que assumiu depois o jovem médico Ernesto.

Reflexões conclusivas

     Sete anos depois de lançar As Veias Abertas, Galeano faz um balanço do seu impacto e de como a atualidade do sistema capitalista confirmava aquelas teses. Ali deixa claro que a obra se tratava de um autor não especializado dialogando com um público não especializado, e que o melhor retorno desse trabalho não tinha vindo de uma crítica especializada, mas de exemplos vivos do cotidiano:
 
[...] a moça que ia lendo o livro para sua companheira de assento e terminou pondo-se de pé e lendo em voz alta para todos os passageiros enquanto o ônibus atravessava as ruas de Bogotá; ou a mulher que fugiu de Santiago do Chile, nos dias da matança, com o livro envolto nas fraldas do bebê; ou ainda o estudante que durante uma semana percorreu as livrarias da rua Corrientes Buenos Aires e foi lendo pedacinho em pedacinho, de livraria em livraria, porque não tinha dinheiro para comprá-lo. (p. 285)

     Mesmo quando fala do próprio livro, Galeano continua fazendo sua narrativa presente da história. E traduz o espírito vivo de militância que seu texto desperta. Em vez de medir o carácter acadêmico da obra, mais vale medir o quanto falta, na academia, esse espírito; que tanto a academia conecta seus saberes com a prática. Pois, como diz Goethe, toda teoria é cinza, e verde é a árvore de ouro da vida.

Referências

CHIAMPI, I. O realismo maravilhoso: forma e ideologia no romance hispanoamericano.
2.ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.

GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.

GUEVARA, Ernesto Che. Notas de Viaje: diario en motocicleta. Bogotá: Ocean Sur, 2007.

MARIÁTEGUI, José Carlos. Sete ensaios de interpretação da realidade peruana. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

* Todas as citações diretas, remetentes à obra As veias abertas da América Latina (GALEANO, 1998), aparecerão aqui, mencionadas apenas com número de página, para assegurar um fluxo de leitura. Quando citados outros autores, será seguida a regra de autor e data.
** Artigo publicado na Revista Sures, julho 2015, n. 6, pág. 112-118.