Professores: para quem?

Parece certo dizer que Sócrates foi o primeiro pedagogo do Ocidente. Entretanto, à medida que fez da maiêutica (pergunta e resposta) o fundamento da educação de dentro para fora, ele acabou negando o valor da interpessoalidade da relação pedagógica. E Platão foi fiel a esse imperativo: a verdadeira educação é aquela que se desenvolve no diálogo da alma consigo mesma. Ora, se a relação pedagógica não tem importância, para que professor e professora?

Já os sofistas, ainda na Antigüidade, ao afirmarem que a educação é a segunda natureza humana, valorizavam a convivência. Não menos que Aristóteles, para quem educar é preparar para a vida social. Também Epicuro, durante o helenismo, enfatiza a importância da convivialidade como percurso formativo e denomina sua escola de Jardim, onde a amizade deveria ser cultivada como um valor fundamental. Segundo esses pensamentos, o professor e a professora são importantes no processo de ensino-aprendizagem porque são elos entre o saber e os aprendizes com quem estabelecem interações.

Na Idade Média aparece Agostinho, outro que desbanca o professor e a professora. Católico e platônico, ele segue a linha socrática da educação de dentro para fora e sustenta que educar-se é deixar-se iluminar pela revelação divina: "Não se aprende pelas palavras, que repercutem exteriormente, mas pela verdade, que ensina interiormente", dizia ele. Diferentemente desse norteamento, Tomás de Aquino valoriza a figura do ensinante ao inverter a ordem das prioridades na educação quando valoriza o mundo concreto do ser humano e propõe um processo de ensino-aprendizagem baseado no raciocínio, no pensar.

No início da Modernidade, ao modo dos humanistas do Renascimento, os quais pretenderam conciliar fé sobrenatural e confiança no homem como um todo indivisível, René Descartes acreditava na educação como caminho de humanização do homem e da mulher. Contudo, supervalorizou o racionalismo e a lógica da educação pelo pensar, caminho que também coloca a relação pedagógica em segundo plano.

Jean-Jacques Rousseau, já influenciado pelo empirismo, defende a educação como desenvolvimento natural do indivíduo, pois ele tem uma natureza boa, que não precisa ser moldada para o convívio social. Se a natureza é boa e não precisa de mestre, mais uma vez a atividade docente é colocada em posição de somenos. No fundo, esse pensamento canaliza e inspira o entendimento de que há uma racionalidade universal, a qual se faz potencialmente incrustada no humano, ele que deve ter liberdade para desenvolvê-la e particularizá-la em si, à medida que se desenvolve biologicamente. Nesse sentido, o educado é o indivíduo que se faz racionalizado, capaz de pensar, julgar e escolher. Ser autônomo, independente e emancipado, rumo à felicidade plena e em direção à paz perpétua, idéias que os Iluministas defenderam como percurso natural da educação. Mas, nessa perspectiva, se há uma natureza racional que se desenvolve por si mesma, sem depender do educador, novamente o papel da docência é colocado em cheque.

Friedrich Nietzsche, ao contrário, parece não pensar assim. Ele próprio ansiou pelo encontro com um professor, um mestre que o ajudasse a formar-se como um todo harmônico, como um sistema vivo e integral. Diz Nietzsche: “Quando em um tempo me abandonava, ao meu agrado, aos desejos, eu pensava que o destino teria me livrado da tremenda fadiga e do dever de me auto-educar somente se encontrasse, no momento certo, um filósofo como educador, um verdadeiro filósofo a quem eu pudesse obedecer sem pensar, pois depositaria nele uma confiança maior que em mim mesmo. Assim me perguntava: quais serão os princípios segundo os quais ele me educará? (...) Era, então, um embalar-se nos meus desejos, quando imaginava poder encontrar como educador um verdadeiro filósofo, que fosse capaz de erguer uma pessoa além da insatisfação congênita da época, e que novamente ensinasse a pensar e a viver com simplicidade e sinceridade, isto é, diferente da atualidade, no significado mais profundo; hoje, de fato, os homens tornaram-se mascarados e complicados que devem ser não sinceros quando falam, sustentam opiniões e querem agir em conseqüência destas. Nesse estado de angústia, necessidades e desejos, encontrei Schopenhauer” (Considerações extemporâneas III, 1874).

Em Nietzsche surge o anseio pela educação em que o homem é o conteúdo e o sujeito. Não é uma alma, como na Antigüidade, nem um ente espiritual, como na Idade Média, muito menos um cérebro ou uma natureza, como na Modernidade mais recuada. Em Nietzsche o homem total é que deve receber o cuidado da educação e do educador, numa relação pedagógica que valorize tanto o ensinar quanto o aprender. Aí o professor e a professora passam a ter sentido. Sua prática humana e social passa a ter valor. É o modelo de educação em que o homem esteja presente.

Mas parece que não aprendemos essa lição nietzscheana. E é Paulo Mendes Campos quem, a seu modo, alerta-nos para esse esquecimento. Em uma de suas crônicas, ele escreve:

“Nos bancos da escola me ensinaram que, segundo o sábio Claude Bernard, o caráter absoluto da vitalidade é a nutrição; pois onde ela existe, há vida, onde se interrompe, há morte. Mas não me ensinaram que, entre os animais humanos, o lado que pende para a morte, por falta de nutrição, é muito mais numeroso que o lado inclinado para a vida.

Me ensinaram que os alimentos fornecem ao homem os elementos constituintes da própria substância humana. O homem é o próprio alimento que ele come. Mas não me disseram que existem homens aos quais faltam os alimentos que constituem o homem. Homens incompletos, homens mutilados em sua substância, homens deduzidos de certas propriedades fundamentais, homens vivendo o processo da morte.

Me ensinaram, mas num delicado modo condicional, que, sem o concurso de certos alimentos minerais e orgânicos, depressa a vida se extinguiria sobre a Terra. Mas não me disseram que, depressa, por toda a parte, a vida se extingue no duro modo indicativo.

Me ensinaram que o oxigênio é o primeiro elemento indispensável. Mas não me disseram que o oxigênio é o bem comum da humanidade, salvo em minas e galerias onde é escasso.

Me ensinaram que o carbono, o hidrogênio, o azoto, o fósforo e outros minerais são decisivos à vitalidade das células. Mas não me ensinaram (por óbvio, mas eu era um estudante tão distraído) que aqueles elementos não se encontram no ar que respiramos. E ainda que se encontrem na terra, acaso diferidos por uma criança, seu poder de assimilação é nenhum.

Me ensinaram que há alimentos ternários e quaternários, mas não me disseram que dois terços de nossos irmãos no mundo passam fome.

Me ensinaram que os alimentos ternários, constituídos de gordura e pelos hidratos de carbono, são superlativamente importantíssimos. Mas não me disseram que, em cem, dez homens estão, a qualquer hora, às portas da morte, por inanição. Mas não me ensinaram que, em certas regiões do mundo, há homens que consomem ovos, leite e carnes em quantidades muito acima das exigências da máquina orgânica.

Me ensinaram que a sensação de fome é acompanhada de contrações gástricas, uma espécie de cãibra no estômago; mas me disserem isso impessoalmente, como se fosse dedução teórica de um acidente possível.

Me ensinaram que as vitaminas são substâncias importantes para o crescimento e para a saúde, quando elas faltam, comparecem o escorbuto, o beribéri, a pelagra e outras doenças. Mas não me disseram, nem onde, nem quantos padecem de avitaminose.

Nos bancos da escola me ensinaram muitas coisas. Mas não me disseram coisas essenciais à minha condição humana: o homem não fazia parte do programa!”

Uma educação em que o humano faça parte do programa, tal como Nietzsche preconizou, requer que, antes, educador e educando se coloquem como sujeitos e protagonistas do processo de ensino e aprendizagem. Daí a valorização do professor e da professora. Do contrário, meras abstrações deixarão de transformar o percurso educativo naquele projeto segundo o qual o homem e a mulher fazem-se a si mesmo, à luz de um modelo que lhes possibilite o estilo existencial lastreado no valor particular e no valor imprescindível que o outro tem e é, na dialética da individuação e da sociabilidade, do afeto e da razão, do agir e do pensar, da prática e da teoria. Fora da compreensão de homem como ser integral e do conceito de educação também integral, para que servirão a professora e o professor?