CHEIROS, MEMÓRIAS E ANCESTRALIDADE

Já reparou como os cheiros nos permitem viajar em nossa história de vida, trazendo lembranças e sensações vividas?

Aqui no semiárido nordestino, os dias de chuvas são comemorados e vividos com alegria e contemplação. Assim aprendi desde pequena, a vibrar interiormente ao avistar nuvens carregadas de chuvas. Hoje, essa memória foi despertada pela sensação que o vento e a chuva trouxeram, me transportando a "outra dimensão", que me encorajou a escrever este artigo.

Ao refletir sobre a sensação que foi despertada através do olfato, (o cheiro da terra molhada e do vento), compreendi por que estudiosos do olfato dizem que ele se faz em regiões do cérebro que guardam as memórias afetivas, um lugar íntimo. E é provável, que o mesmo vento e a mesma chuva, no mesmo momento, transportassem outras pessoas a lugares totalmente distintos, daquele vivenciado por mim.

Mais que uma experiência intimista, esta vivência expressa características de um sistema de relação com a vida e com a natureza, que apesar de pouco evidenciado na academia, nas ciências, no mundo corporativo e no mundo do trabalho na atualidade, tal sistema existe, é bem vivo e pode de ser acessado por cada um de nós. É a partir dele que temos a experiência do sensível.

Esse sistema, tem significados, tem lógica interna e produz saberes que orientam à vida prática das populações, que ainda vivem conectadas aos ciclos da terra. Apesar de não viver mais em ambiente rural, onde aprendi a vivenciar o mundo de tal maneira, esta lógica parece viver dentro de mim, razão pela qual, estão presentes elementos dela, naquilo que escrevo.

Somente depois de muitos anos, vivendo dentro de um sistema baseado quase exclusivamente na racionalidade científica, o mundo dos conceitos e das construções teóricas, é que pude perceber o quanto a negação do ato de sentir, pode distanciar uma pessoa dela mesma.

No campo do sensível, uma pessoa pode reconectar-se consigo mesma, pelo poder que o olfato tem de trazer à tona, memórias, emoções e sentimentos. O olfato nos lembra, ao contato com uma planta aromática, por exemplo, que também somos natureza, que nela há ciclos que se renovam e nos dão, constantes oportunidades de renovação e de recomeços.

As plantas aromáticas são soberanas em tal função, pois são repletas de memórias, têm o poder de trazê-las à consciência e podem estimular novas emoções e até atitudes em relação a memórias que podem ser muito antigas.

OLFATO, INDIVIDUALIDADE E ANCESTRALIDADE

Apesar de pouco estudado pelas ciências, em relação aos outros sentidos, o sentido do olfato é essencial na vida humana, sem ele não é possível o sentido do paladar. A capacidade de sentir emoção também está ligada ao olfato. Embora captado pelas narinas, onde se impregnam as moléculas capazes de produzir a olfação, transmitidas ao cérebro, o olfato ocorre como um fenômeno cognitivo, é pessoal e variável de pessoa para pessoa.Embora possamos sentir as moléculas pelo nariz, é apenas no cérebro que conseguimos distinguir e definir que cheiro sentimos.

É por essa razão, que é um sentido, que ao ser estimulado por elementos da natureza, como a chuva, plantas, ou mesmo por perfumes artificiais, cheiro de alimentos e ambientes, pode nos ligar a emoções e sentimentos, além de percepções exclusivas, pessoais e intransferíveis. É a percepção de si, de ser quem se é, de sentir como se sente, de ser você em sua história singular. O olfato é uma das formas de relembrar de referências subjetivas em nossa estrada e realizações, da presença daqueles que nos antecederam nos nossos propósitos e realizações.

O que construímos objetivamente contém nossas referências afetivas, nossas subjetividades e buscas pessoais. Memórias e emoções arquivadas são parte de nós, elas falam em nosso interior daquilo que somos, que desejamos e podemos realizar ou devemos enfrentar em nossa trajetória. Acredito que existe uma coerência interna que nos leva às realizações que nossos currículos apresentam, que nos levam aos nossos vínculos e interesses.

Tomar consciência de nossas memórias e sentimentos, é relevante para aceitarmos o fato de que nossa busca profissional, pode e deve estar alinhada às nossas orientações internas, valores e prioridades pessoais. Memórias são parte de nosso ser integral, pois o que nos diferencia e nos evidencia seja em qualquer oportunidade profissional, seja numa seleção, numa promoção, não são nossas glórias acadêmicas ou curriculares, é nossa singularidade expressa em cada momento, ciclo ou fase da nossa vida.

Foi sentindo o aroma da terra, da chuva e do vento, que lembrei da minha ancestralidade, da gente que iniciou uma jornada de resistência e resiliência no semiárido nordestino e construiu um legado de saberes que intuitivamente, até hoje, permanece na gente, que continua a vivenciar essa realidade geográfica, climática, ambiental e cultural.

Não vivenciei os mesmos níveis de realidade que eles, mas pelas memórias de infância, acesso a determinadas formas de ver o mundo atual, com um olhar mais agradecido pelas conquistas deixadas por eles, que solidariamente, contribuíram com a formação de gerações que hoje atuam, nas universidades, nas empresas, no comércio e em muitos espaços inimagináveis para aqueles que vieram antes de nós.

Nós damos continuidade a história, levando o bastão que um dia será repassado para nossos filhos e netos, com um pouco de aprendizado que será enriquecido e renovado constantemente por gerações e gerações. Assim, compreendo que há presença daqueles que nos antecederam naquilo que realizamos e somos hoje, em nossos propósitos profissionais e sociais, bem como haverá um pouco de nós nas construções das gerações futuras.

De algum modo, as memórias afetivas, me motivam a dar continuidade e encorajar a outros a permitir-se o contato com eventos simples e cíclicos: o cheiros da chuva, do verão, outono, inverno, primavera, todos os ciclos tem seus cheiros próprios, assim como as plantas, a vegetação caatingueira, as águas, os ventos, as pessoas, os animais e os lugares.

Ao sentir o cheiro da chuva e do vento, revivi uma determinada sensação que era ambiental e física, mas intensamente afetiva, que se fosse capaz de descrevê-la, sei que tomaria a forma de uma poesia, uma música, uma expressão de arte, algo que ao mesmo tempo em que remete ao passado, também é presente e é renovador. Os aromas da natureza e suas forças, me fazem olhar com mais amor, a vida rural, a arte de plantar para o próprio sustento, o trabalho árduo tão caro aos nossos antepassados, parte dessa nutrição ajudou-me na minha formação como pessoa, a ser quem sou.

A inabilidade dos nossos avós rurais em ler um aparelho de GPS versus a sua arte sensível de orientação pelas estrelas, pelo canto dos pássaros e pelo movimento das nuvens do céu, tal estado de integração é que me impulsiona a compartilhar este artigo. Tal forma de viver a vida na terra, existe para quem decide conectar-se a ela.

Especialmente no meio digital, atualmente nos expomos a muitos e intensos estímulos, de imagem, som e conteúdos e corremos o risco de esquecermos de ouvir e sentir nossa própria história. Aquela história que tem o nosso cheiro e que está registrada internamente.

Se pararmos alguns minutos para refletir sobre a nossa sensibilidade olfativa, sentir literalmente os cheiros do nosso universo, veremos como cheiros em particular, marcaram as fases de nossas vidas. Se pararmos para sentir o cheiro das coisas, também refletiremos como tal sentido, tão vital, que nos protege de ingerir um alimento estragado ou de nos mantermos em um ambiente insalubre, também é capaz de nos levar a zonas sutis ainda não conscientes mas significativas de nossa história pessoal e coletiva.

Você já parou para observar quais aromas identificam sua história de vida?

Se fosse contar sua história em termos de aromas e não apenas fatos e acontecimentos, como seria o repertório olfativo do seu filme particular?

Sintamos o cheiro do presente, o cheiro que emana da atual estação do ano, o cheiro que emana da terra e seus elementos, cheiros repletos de vida!