MULHERES, MULHERES: COROAS DE OUTRA COROA

PREFÁCIO AO LIVRO DE PAULO CAMELO, MENÇÃO HONROSA NO PRÊMIO EDMIR DOMINGUES DE 2019, DA ACADEMIA PERNAMBUCANA DE LETRAS, NA CATEGORIA POESIA.

A poesia depende da sensibilidade, mas também do conhecimento teórico e do treino. Assim, aquilo que é emoção pura manifesta-se por meio de uma estrutura gramatical, tem uma gramática própria – a Poesia é uma Arte. Tomei conhecimento, através do escritor e conferencista João Barcellos, do que diz o mestre Manuel Reis em Linguagem/Poesia/Música: A dicotomia estrutural de uma Língua é lida, ou vista, sob dois conceitos gramaticais – a saber: material (espaço lexical) e relacional (espaço gramatical). A compreensão da Poesia acontece pela análise da interação das equivalências e rupturas sintáticas, léxicas e morfológicas dessas estruturas.

Prefaciar “Mulheres, mulheres – Coroas de outra coroa”, de Paulo Camelo, pede para ir além da leitura crítica da obra. Se alguns iniciados podem compreender a concepção e elaboração dessas coroas, outros interessados, apreciadores da poesia, e não necessariamente poetas, precisam de algum suporte para ler, compreender e fruir do encantamento desse trabalho de qualidade única, excepcional.

Cabe, portanto, iniciar pelo conceito de Soneto. Esta é uma forma poética que pertence ao gênero lírico, sendo considerada uma das formas mais perfeitas de poema e também das mais difíceis de compor. É composto apenas de catorze versos que se destinam a resumir uma pequena história, vivida ou imaginada pelo autor. Para tanto, se presume que haja domínio da técnica e poder de síntese.

A coroa de sonetos surgiu depois de uma série de tentativas de escrever sonetos ao redor de um tema. É uma superforma fixa que consiste numa série de quinze sonetos. O primeiro soneto começa pelo primeiro verso e termina pelo segundo verso de um soneto-base (pré-existente); o segundo soneto começa pelo segundo verso e termina pelo terceiro verso do soneto-base e assim por diante, até o décimo quarto soneto que começa pelo décimo quarto verso e se fecha sobre o primeiro verso do soneto-base.

As coroas de outra coroa fazem o mesmo percurso criativo, tomando agora, como soneto-base, cada um dos sonetos da coroa. Essas catorze coroas têm cento e noventa e seis sonetos, aos quais se somam os catorze da coroa inicial “que lhes serviu de base” e o próprio Soneto-Mestre, somando duzentos e onze sonetos em sua estrutura. Para que possa servir de soneto-base, cada um dos versos de tal soneto tem que ter condições de iniciar e de findar uma frase. O soneto-base, no caso deste livro, era um soneto previamente existente:

“Que seja clara, ou mesmo seja escura,

até morena, loura, então mulata.

Eu lhe direi por certo a mesma jura

e lhe farei também mesma bravata.

Até pode ser baixa, ou seja alta,

a mim não me convém decerto a altura.

Eu sei, não sentirá a minha falta.

Ela ouvirá, no entanto, a minha jura.

Até pode ser gorda, eu sei também,

mas pode ser esbelta, bem magrinha,

eu sempre a amarei, sei mesmo assim.

Eu chamarei ‘querida’, ‘amor’, ‘meu bem’,

farei sentir-se minha, toda minha

e – pode crer – darei tudo de mim.”(1).

Este poema antecipa os versos que estarão presentes na elaboração dos sonetos da primeira coroa, um a um. Guarda também uma surpresa para o final do livro. Se poemas são resultado de engenho e arte, Paulo Camelo confirma que é com isso mesmo que ele está lidando e, certamente, com maestria: (...) “A inspiração libera engenho e arte. / A introdução / ao uso de rotinas traz-me a fé.” (4-11).

Para alcançar esse grau de expressão, há necessidade de estudos e disciplina.

Assim, surgem aos nossos olhos coroas de sonetos, com versos todos em ritmo holístico. O termo foi cunhado pelo próprio autor para definir poemas entre cujos versos há a figura estilística da sinafia. Trata-se de um processo interfrasal em que, para efeito de leitura (o poema foi feito para ser declamado), a sílaba átona final de um verso tende a se unir à sílaba inicial do verso seguinte, formando uma unidade métrica ou sintática. A sinafia é justamente um aspecto da estilística fônica – que pode, ou não, incluir a compensação métrica. A leitura segue a seqüência da prosa, mas o ritmo é o de um poema. O uso do ritmo holístico foi uma escolha perfeitamente acertada para o formato de coroas de outra coroa, porque a leitura desta obra deixa de ser um monocórdio, a repetição constante marcada nos finais de verso, e passa a ter maior riqueza sonora. Assim, pode o leitor fruir da lírica e do ritmo do poema, entendendo que, ocasionalmente, o ritmo pode prevalecer sobre a forma:

Seja, por exemplo, quando o autor reflete sobre o passar do tempo, a velhice:

“Eu sempre a amarei. Sei, mesmo assim,

ao mundo ela também responderá,

sem se atrelar a alguém que agora está

mais próximo do ocaso, do seu fim.

Eu sempre a amarei, mas hoje eu vim,

então, falar do amor. Sei que haverá

momentos em que não mais cantará

bela canção de amor que fez pra mim.” (11),

seja quando fala do Amor, uma das constantes do tema desenvolvido:

“(...) eu sou o amor do amor que ela me tem.” (12).

Antes de discorrer sobre as coroas da coroa, quero tecer um comentário sobre a apresentação esquemática da composição, que aparece na capa e no início de cada coroa. Paulo Camelo foi o idealizador das rosáceas. Quando fez seu livro Coroas de uma coroa, o autor tomou como base um heptágono cujos lados eram coroas que se tocavam. Essa escolha foi de ordem prática, pois ele achava difícil fazer um polígono de catorze lados. Para este livro, surgiu a solução e ele fez o polígono, juntando catorze triângulos isósceles unidos por seus lados maiores. A seguir, ele juntou outros polígonos iguais, ligando seus ângulos no centro de um polígono-base. Dessa forma ele replicou o esquema da coroa inicial, nas coroas da coroa, em que os números se multiplicam. Cada um dos triângulos isósceles é um verso do soneto e eles unem-se pelo centro de um polígono central, formando uma rosácea com um polígono central e catorze polígonos satélites. As cores são meramente ilustrativas, mas poder-se-ia usar uma cor para cada verso de cada soneto e fazer uma rosácea completa e multicolorida.

A parte seguinte do livro, as coroas da coroa, é também a mais ricamente elaborada, se é que assim se pode dizer de um livro que, conforme já descrevi até aqui, tem tantas particularidades únicas.

Nessa etapa, além do formato de coroa, seguindo a exigência do uso de versos dos sonetos-base, conforme já foi descrito para cada uma delas, e do uso do ritmo holístico, para completar e enriquecer ainda mais a elaborada sofisticação deste livro, Mulheres, mulheres, Paulo Camelo acrescentou-lhes mais um requinte. Elaborou uma lista de nomes femininos, desde os das mulheres que lhe são próximas, amigas de trabalho e pessoas conhecidas, até os de pessoas famosas ou, mesmo, de algumas desconhecidas. A forma que ele encontrou para homenageá-las, e a todas as mulheres, foi incluir seus nomes em acróstico (inicial) nos sonetos desta segunda parte.

Embora não haja uma relação necessária entre o assunto do poema e o nome no acróstico, por estar habituada à área de leitura interpretativa, estabeleci uma relação logo no primeiro soneto, para instigar o leitor a descobrir outras, por conta própria:

“Merecedora, e tanto, de elogio,

a loura bem gelada que eu sorver

recobrará minha energia. Um rio

invadirá minha existência e assim

navegarei feliz no seu sabor,

assumirei o que couber a mim.” (1-1).

Um verso literalmente delicioso que lembra o mar, ou estar à beira-mar, numa marina, tomando uma cerveja gelada.

Outra associação ocorreu neste poema, em que “Ondina” remete a ondas e o tema do poema é uma ondulação dos sentimentos.

“O sentimento, ou mesmo o meu amor,

necessitando de compreensão,

declara-se confuso. Uma razão

inversa ao meu sentir me faz supor

não ser possível receber favor

aquele que interpela o coração.

Como saber se vou amar ou não

o ente que me adora? Hei de supor

não ser compreensível ter prazer

sem receber igual, sem se encantar

uma vez só. Mas é constrangedor

estar na contramão e não haver

lugar melhor. Não sei como explicar:

o meu sentir não preza pelo ardor.” (10-4).

Ainda é possível associar Virginia e inspiração (10-6); Joana d’Arc e ascese (10-7), entre outros a descobrir.

O apuro pode também transparecer num achado para uma rima inesperada:

“Ao não saber-lhe a cor, talvez seria

interessante ouvir aquela voz

mas não ousei, não tive essa ousadia,

ainda não nos conhecemos nós.”

A elaboração pode nos surpreender ainda num momento em que o eu lírico extravasa idéias e sentimentos; volta-se ao interior e expõe-se sem receios:

“A mim não interessa, entanto eu venho

incomodar toda essa gente aqui,

numa loucura que jamais senti,

ou sem loucura alguma. Eu me mantenho

astuto e calmo, em busca de fazer

novas loucuras, só pra incomodar.

Não interessa, eu sei, mas o prazer

imenso que me envolve é salutar,

louco que sou. O fato de querer

manter zangado alguém que eu amo tanto

aumenta enormemente o meu prazer.

Lamento incomodar, mas esse encanto

um dia levará minha loucura

ao fim do mundo em busca de aventura.” (6-7).

A Arte também pode ganhar realce em soluções criativas e inovadoras para um acróstico como este em que um sobrenome aparece desdobrado, no último terceto, em três monossílabos.

“Com formas ou medidas sensuais

a mulher pode ter, ou não, valor,

registra o popular saber. Sem dor,

merecimento algum progride, e mais:

em nome do prazer, se busca a paz,

naturalmente implícita no amor.

Lamentos e penúrias vão compor

um ponto de discórdia. São banais

carícias sem carinho. O mundo explode,

inapelavelmente se sacode,

antes de o fogo anunciar o fim.

Mar de emoções define o imenso amor

que me domina. Entanto, a ingrata dor,

sem ter maior valor, não cabe em mim.” (10-10).

Destaco alguns aspectos apenas a título de ilustração, porque este é um livro para fruição da boa poesia, em conjunto com uma experiência de descobertas e recriação. Mulheres, mulheres fala delas, de todas elas, de uma em todas e de todas em uma, mas nunca de forma rasa e, menos ainda, de modo linear.

O eu lírico se debruça sobre a definição do feminino e do como ele é diversamente representado, além de se ligar ao que é feminino nas coisas ao nosso redor.

Desse modo torna tudo atemporal e universal, pois os temas podem se aplicar a quaisquer outras situações diferentes daquelas que os inspiraram. É nesse exercício supremo de engenho e arte que o poeta encontra a plenitude:

Então meus feitos mostrarei. Enfim,

meus atos eu não tenho que esconder;

intimidade à parte, eu trago em mim

louros e prêmios. Com real prazer,

isto é o sublime orgulho que comigo

acende o fogo, e eu gosto de acender.

Mesmo sem mais transtorno e sem perigo,

esses meus feitos fazem-me viver

grandes momentos, num total nirvana.

Ante este mundo louco e sofredor,

nada me abate, nada mais me engana,

atinge ou prende. Algo em meu ser me diz

lá no meu âmago: se eu tenho amor,

um mundo livre é o que me faz feliz. (14-8).

Diante de tão complexa elaboração, esta obra quase me rouba a eloquência e deixa-me sem adjetivos, embora queira ressaltar ainda um ponto. Devo mencionar como se comporta o eu lírico nesse conjunto todo. É trabalho de um prestidigitador, o que encontrei. Aliás, mais uma surpresa, porque o autor passeia pela temática de modo totalmente inesperado. Na maior parte dos poemas e, mesmo no conjunto da obra, nunca se sabe em que direção o tema vai se desenvolver; começa num nível e termina em outro. Remeto para a leitura dos sonetos 9-7, 9-8, 9-9, 9-10 e 9-11, em que o tema começa com Simplesmente mulher e logo passa a ser: Devoção e fome, Saborosa Charque, Sem sal e A maçã, respectivamente. Essa variação é recorrente e ludibria o leitor, impedindo que faça uma leitura superficial e que decifre facilmente a mensagem. Lembra-me uma forma poética de origem inglesa, trazida ao Brasil por Tatiana Belinky. O limerick permite o uso do non-sense e da irreverência e o último verso sempre remete ao primeiro, criando um círculo vicioso onde o desfecho não existe.

Cabe ressaltar ainda a surpresa guardada para o final das coroas. O Soneto-Mestre das coroas poderia ser igual ao Soneto-Base que inicia o livro. Atente, porém, que não é simplesmente a repetição daquele; é o real resultado das coroas, a coroação de todas, formada em outro nível.

Esta joia, produzida pelo grande escritor e poeta Paulo Camelo, que soma méritos muito além daqueles aqui apresentados, merece infinitamente meu louvor e apreciação. Em decorrência disso, espero que os amantes da Poesia sigam-me na leitura de “Mulheres, mulheres – Coroas de outra coroa” e apreciem sua rara beleza poética e estética.

Nilza Azzi

Academia Campineira de Letras e Artes