LITERATURA DE CORDEL - A resistência contra a cultura elitista, contra a opressão aristocrática, que se corrompeu e criou sua própria elite opressora.

O título é genérico, mas, para se evitar injustiças, invoquemos as exceções que povoam todos os espaços. Trataremos aqui da Literatura de Cordel, que surgiu como um instrumento libertário em reação à opressão da aristocracia contra as camadas populares, e que, no decorrer do tempo se impregnou de comportamentos análogos àqueles que eram objeto do seu combate. Ou seja, foi criada para combater uma elite segregadora e opressora, mas criou internamente uma elite em que a conduta de alguns integrantes se aproxima em muito daquela que a arte se propôs combater no seu surgimento.

Alguns membros dessa suposta elite, agem como se fossem superiores aos novatos que investem, ou pretendem investir, nessa modalidade. Formam uma espécie de tribo, uma casta impenetrável, e tentam dificultar o acesso de outros como se fossem verdadeiros donos dessa expressão artística. Fato semelhante ocorre com a Capoeira: assunto que também será abordado ao final deste trabalho.

As primeiras manifestações do Cordelismo datam do século XVI na Europa Renascentista. Os trovadores cantavam as dores, conquistas, sonhos e lutas dos seus e de outros povos. Depois a oralidade dos cantos se juntou à forma escrita e chegou ao que se conhece hoje como Literatura de Cordel ou simplesmente Cordel – referência aos cordões usados em feiras para expor os folhetos contendo suas histórias.

Ela chegou ao Brasil, através dos portugueses desde o início da colonização, mas ganhou força a partir do século XVIII e acabou por se tornar uma modalidade literária típica do Nordeste – muito embora tenha se difundido também por outras regiões do país. Grandes escritores brasileiros foram influenciados por essa modalidade literária, dentre eles Ariano Suassuna, João Cabral de Melo Neto, Jorge Amado, José Lins do Rêgo, Guimarães Rosa, etc. Evoluiu como toda e qualquer criação humana, adaptando-se às inovações tecnológicas. Especialistas como o holandês radicado no Brasil, Joseph Maria Luyten defendem que no país já foram publicados mais de 100 mil exemplares da Literatura de Cordel.

O ferramental que liga essa modalidade literária diretamente ao povo é a linguagem simples, coloquial e descompromissada, com a prevalência de rimas, métrica e oralidade. Outro fator que a aproxima das camadas populares é a exploração de temas cotidianos desse povo, temas religiosos, folclóricos, profanos, históricos, políticos, narrados com humor, ironia e sarcasmo. Por fim, o amálgama dessa modalidade literária com o povão se completa no seu vínculo direto com outras modalidades artísticas populares, como a música, a xilogravura, o teatro, a dança. Ariano Suassuna pensou em fomentar esse vínculo ao criar o Movimento Armorial, em 1970, voltado para a valorização da cultura nordestina. Suassuna referia-se ao Cordelista como o “Romanceiro Popular do Nordeste”.

Mas, há outro lado, não menos revelador, da Literatura de Cordel: as relações que se estabelecem entre os cordelistas na atualidade. Desconhecemos se há algum estudo que trata do assunto, em épocas anteriores, contudo, atualmente é possível observar a empáfia, a arrogância de alguns cordelistas veteranos que adquiriram fama, no trato com os cordelistas calouros. É óbvio que merece novamente destaque o fato de que há exceções, e muitas. Os tais arrogantes formam uma tribo que se comporta como uma elite, tal qual a elite arrogante e opressora oriunda das camadas aristocráticas dos tempos do surgimento do Cordelismo, e tentam, inclusive, dificultar o avanço dos novatos interessados no aprendizado da modalidade, como já foi citado.

A atitude dos referidos veteranos do Cordelismo lembram o tratamento dado por estudantes veteranos a estudantes calouros em universidades e colégios elitistas: os “trotes”, prática reacionária travestida de brincadeira.

O que parece ser um simples jogo de entretenimento ou

comemoração é, na verdade, uma manifestação de poder

que envolve questões profundas relativas ao íntimo do ser

humano. (Figueiredo: 05/06/2008).

Há, por parte dos integrantes da suposta tribo referida, muita crítica e preocupação em se apontar erros nos cordelistas novatos. O próprio termo “cordelista” é destinado aos veteranos: os novatos são tratados apenas como “pessoas que escrevem Cordéis”, os veteranos são “Cordelistas”. Uma nítida forma de discriminar e procurar minimizar a importância do outro. Freud disse que o que se fala do outro revela muito de si mesmo, não na fala em si, mas na motivação e objetivo da fala. Vejamos que, novamente, estamos diante daquilo que se assemelha ao tratamento dado aos calouros nos estabelecimentos de ensino considerados de elite – não é diferente também do tratamento dispensado pelos veteranos aos recrutas no meio militar. São atitudes recheadas de autoritarismo, vaidade, arrogância, etc. Mas o que, via de regra, move os indivíduos a se comportarem assim? Vejamos uma resposta relacionada aos trotes aos calouros:

Trata-se de uma busca desesperada de se preencher um vazio

íntimo – sentimento de insegurança manifesto ou em

potencial. Os trotes, no somatório, constituem uma

expressão simbólica daquilo que é a essência de uma

sociedade hierarquizada – a ideia de poder (neste caso, leia-

se conhecimentos), expressa na velha indagação: “sabe com

quem você está falando?”. (ibdem: idem).

É óbvio que por trás das questões relacionadas com os traumas e frustrações que formam a personalidade e o caráter dos que agem assim enquanto indivíduos, há também os fatores culturais que levam à busca do status e papéis sociais de destaque numa sociedade capitalista que tenta se hierarquizar como estratégia de crescimento. A hierarquia gera o descontentamento de quem está na parte de baixo desse processo, daí surge a emulação e a luta por galgar novos níveis do processo – é uma explicação lógica, mas as ações dos sujeitos dentro desse processo são inconscientes. Cumpre esclarecer que essa lógica fica apenas no campo das sensações, porque as oportunidades de se mudar de posição, isto é, de mobilidade social, dentro desse sistema são mínimas.

Todavia, não é só no Cordelismo que existe tais atitudes. Todas as instituições que surgem da resistência à opressão tendem, no futuro, para que alguns de seus membros, tenham atitudes muito próximas das que combatiam. A herança maldita do autoritarismo que gera a opressão, sempre sobrevive. No interior de alguns quilombos, ex-escravos tiveram atitudes próprias dos antigos senhores, capitães do mato e feitores; na Capoeira, principal instrumento de resistência à opressão da raça negra no Brasil, até hoje ainda existem capoeiristas que chegam à condição de liderança e têm atitudes similares a senhores escravistas, capitães do mato e feitores, tal qual ocorreu em alguns quilombos no passado, como foi dito. A postura autoritária envolve questões culturais e da psique do indivíduo.

O autoritarismo é uma espécie de fetichismo de si mesmo.

Ele depende da presença física do autoritário; em alguns

casos essa presença é substituída por uma imagem

mentalmente formada e instigada pelas circunstâncias. Há

aí uma demonstração de forças e, consequentemente, a

negação das limitações da pessoa autoritária, isto é, o

autoritário não se vê como alguém que comete erros e que

deve aprender com eles para não repeti-los. Ele vê em si

um ser idealizado e investe na manutenção dessa imagem

“imaculada” e “superior”; a pessoa autoritária é incapaz de

fazer autocrítica (...). (Figueiredo: 28/09/2008).

E aqui cabe registrar a semelhança existente entre o Cordelismo e a Capoeira nas suas origens. As duas modalidades – uma literária e a outra cultural-desportiva-marcial – surgiram como instrumentos de luta de classe, de combate, de reação à opressão. As duas modalidades têm viés anarquista, libertário, progressista, no sentido filosófico, e sobreviveram às mudanças que surgiram ao longo dos tempos: acompanham a evolução social e tecnológica, mas não conseguem superar a interferência dos egos das pessoas (de uma parte delas) que assumem a condição de liderança.

Em suma, o Cordelismo e a Capoeira encerram uma contradição: têm uma essência libertária, mas abrigam uma elite reacionária que se julga proprietária da modalidade como um todo.

Referências

As influências do cordel no Brasil. http://ocordelealiteratura.blogspot.com/2016/06/as-influencias-do-cordel-no-brasil.html. Acesso em 22/01/2020.

Diana, Daniela. Literatura de Cordel. www.todamateria.com.br. Acesso em 22/01/2020.

Figueiredo, João. Os trotes: Brincadeiras ou manifestações de poder? www.recantodasletras.com.br/artigos/1020204. Postado em 05/06/2008. Acesso em 22/01/2020.

_____________. Autoritarismo ou Violência Simbólica. www.recantodasletras.com.br/e-livros/1201556. Postado em 28/09/2008. Acesso em 22/01/2020.