PROFANAÇÃO-HUMOR-ÓDIO

Sobre o uso que o humor do Porta dos Fundos faz de símbolos religiosos, particularmente em seu assim chamado especial de Natal, algumas considerações.

A polêmica surge, naturalmente, quando parte do público considera ofensiva a abordagem do tema -- um Jesus homossexual -- e passa a se manifestar a respeito em redes sociais. O termo 'blasfêmia' é evocado aqui e ali. Alguns falam em limites da expressão artística e tantos outros questionam o quão 'artístico' deve ser o escárnio puro e simples com a fé alheia.

Desde já descarto a possibilidade de blasfêmia, vejamos porque.

Profanação é basicamente conferir ao sagrado o status de vulgar -- no Novo Testamento, 'koinon' e 'koinu' para 'comum', e 'akatarton' para 'impuro', tal qual ocorrência em Atos dos Apóstolos 10 : 9 a 16, ou ainda 'bébelos', como em Hebreus 12 : 16 -- depreciando o que na acepção normal da realidade seria objeto de culto, de adoração e contemplação religiosa, por exemplo.

A profanação é, portanto, uma anomalia na percepção do lugar que o símbolo do sagrado, enquanto elemento da realidade, ocupa numa escala de valores comum a uma coletividade.

Blasfêmia é um tipo peculiar de profanação, envolve necessariamente alguma consciência da natureza do objeto profanado, é ato deliberado e o sujeito possui os recursos intelectivos e morais que lhe permitem inferir as implicações de seu ato reprovável.

Nesse sentido, o ato cometido pelos infelizes humoristas tende a profanação, uma vez que dificilmente alguém atribuirá aos senhores Porchat e Duvivier, por exemplo, a mais mínima vivência de fé cristã ou de qualquer outra religião conhecida.

Da perspectiva da natureza mesma do humor ocorre-me Thomas Hobbes, e a sua teoria 'da superioridade', segundo a qual há a propensão de ridicularizar aquilo sobre o que se deseja ser superior, de algum modo. Inconsistente, talvez, mas vejamos o que Hegel teria a dizer sobre nossos criativos humoristas :

"O artista que utilize este gênero de humor parte sempre da sua própria subjetividade para sempre a ela voltar de novo, e assim o objeto da representação propriamente dito apenas serve de pretexto para o artista manifestar a sua verve, expandir-se em saídas, gracejos, palavras espirituosas e rever-se nos saltos da sua caprichosa fantasia. Mas dá-se, neste caso, uma separação entre o objeto e o artista : o objeto é tratado arbitrariamente porque o artista tem de manifestar, antes de tudo, a sua originalidade. Poderá, este humor, ter muito espírito e profundo sentimento, chega, geralmente, a produzir até uma forte impressão, mas, no fundo, é muito mais ligeiro e superficial do que se julga. É que interromper a todo instante o decorrer lógico das coisas, começar, continuar e acabar ao sabor das variações caprichosas do humor, entregar-se a um fogo de artifício de ironias e sentimentos e assim produzir caricaturas da imaginação -- tudo isso é um esforço muito mais fácil do que o de desenvolver e dar uma forma perfeita a um conjunto, no signo do verdadeiro ideal. O humor, nos nossos dias, compraz-se em acentuar os aspectos desagradáveis de um talento impertinente e facilmente cai na sensaboria e no absurdo. O verdadeiro humor é muito raro; hoje, porém, passam por engenhosas e profundas as trivialidades mais enfadonhas, por diminuto que seja o aspecto exterior e as pretensões que tenham ao humor."

G.W.F. Hegel

De uma perspectiva estritamente bíblica, digamos, a coisa ainda não está tão feia para essa gente -- há uma diferença não tão sutil entre 'profanação' e 'blasfêmia' -- não que isso signifique alguma coisa para eles, enfim...

A ofensa aos cristãos, ainda que grave, criminosa, também não é o pior.

O pior é o precedente que uma ação dessa natureza, a continuar sem resposta adequada, gera a médio e longo prazo.

Depreciar um símbolo é muito mais grave que fazer piada com indivíduos, principalmente se for um símbolo de objeto de fé e crença. Quando se deprecia um objeto de crença, é o próprio sentido de ser e existir de quem crê que está sendo diminuído. A disposição de espírito que se espera gerar é a de que o cristianismo é algo desprezível e ridículo em si mesmo. Isso é grave na medida em que se espera condicionar a percepção de toda uma coletividade em relação a um grupo em função de sua fé. O mesmo procedimento pode ser aplicado na segregação por etnia, sexo, classe social, etc.

Apenas recordando, a ideia de exterminar judeus, na Alemanha nazista, não encontrou tanta resistência pois a percepção de que o elemento judeu era um problema estava consolidada por mais de um século de anti-semitismo atuante na cultura nacional. As piadas cruéis de Ezra Pound, na Itália de Mussolini, nada tinham de novo exceto o fato de que eram transmissões radiofônicas, uma novidade na época, mas o ódio escancarado e virulento dos gracejos apenas ventilava o que, literalmente, já estava no ar.

Essa gente deve ser parada, e rápido.

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Israel Rozário
Enviado por Israel Rozário em 30/12/2019
Reeditado em 26/01/2020
Código do texto: T6830236
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