Da VANGUARDA À RETAGUARDA

Iniciamos falando de cinema para discutir a sociedade brasileira e seu entorno latino-americano. Não se trata de usar os conhecimentos do crítico de cinema já que quem escreve é fã de carteirinha dos filmes de conteúdo sociopolítico, aqueles que nos fazem pensar sobre o mundo que vivemos.

Há certa sincronicidade entre estes filmes de diretores brasileiros que abordam movimentos sociais e trama política entre países em épocas distintas. LEGALIDADE (Zeca Brito, 2019) é ambientado ao ano de 1961 em Porto Alegre com base na atuação do governador Leonel BRIZOLA em sua luta para garantir a posse do futuro presidente João GOULART. Para as novas gerações de brasileiros a constatação de que já fomos mais combativos na defesa dos interesses populares. Há cinquenta e oito anos atrás houve resistência e, hoje, estamos sem rumo e sem projeto de reconquista de autonomia nacional. Do outro lado, URUGUAI NA VANGUARDA (Marco Antônio Pereira, 2019) um documentário que relata os projetos culturais – casamento legalizado entre LGBTQ+, legalização da venda de maconha em farmácias, o direito ao aborto, o feminismo e a luta pelos direitos civis dos negros contra o “racismo oculto” – pauta dos direitos humanos fortalecida no governo do presidente José Mujica (2010- 2015).

O Uruguai localizado no Cone Sul da América é uma pequena nação de 3,3 milhões de habitantes. Um país sem petróleo ou cobre soube explorar soja, gado e turismo com estabilidade política e sem grandes escândalos de corrupção. De 1999 a 2002 vivia em crise por sua dependência dos países vizinhos. Mas optaram por um desenvolvimento com mais autonomia. É dirigido desde 2005 por uma frente ampla prestes a completar quinze anos de crescimento ininterrupto. O Uruguai viveu como protagonista a década de ouro da esquerda latino-americana (Cué & Martinez, 2017). Segundo Daniel Astori, vice-presidente de José Mujica “estamos agora com 9% de pobreza e a miséria não é estatisticamente mensurável”. E, acrescenta: ”Só recebemos investimento direto, produtivo. O Uruguai não é uma praça financeira aonde chegam capitais voláteis”. Os autores supracitados dizem que, com o Brasil e a Argentina em queda, esse pequeno país traçou a terceira via e manteve a sua estabilidade.

O Brasil é um país-continente que em vários momentos históricos foi ponta de lança do imperialismo norte-americano até por conta de suas dimensões estratégicas: o quinto maior país do mundo com 8,51 milhões de km². É atualmente a 9ª maior economia mundial com terras de extrema abundância e um vasto litoral, com a terceira maior reserva de petróleo, com as maiores jazidas minerais do mundo e a maior reserva de água potável entre outras tantas riquezas. No entanto, esta realidade de abundância nada tem a ver com o escandaloso cenário de escassez e a enorme concentração de renda. Em 2018, apenas cinco indivíduos detêm a mesma riqueza que a metade da população brasileira. Além das estatísticas oficiais comprovarem o aumento da pobreza e da miséria, ocupamos a vergonhosa 79ª posição no ranking de respeito aos Direitos Humanos – IDH –medidos pela ONU e o penúltimo lugar no ranking da Educação entre os 40 países analisados. Nosso desenvolvimento está completamente travado (Fattorelli, 2018). Em 28 de agosto de 2019 a população do Brasil atinge a marca de 210.147.125 habitantes conforme dados do IBGE publicados no Diário Oficial da União.

O Brasil tem formação histórica distinta dos países latino-americanos, mas o Uruguai se aproxima do Rio Grande do Sul por suas atividades econômicas e geográficas nos pampas, onde os gaúchos lidam com a criação de gado e a produção de charque: as “charqueadas” com trabalho escravo e os “saladeros platinos” uma usina capitalista com trabalho assalariado e maior produtividade. Mesmo quando usavam mão de obra escrava era em pequena quantidade em relação às monoculturas do café e da cana – tipo “plantation” onde usavam a “colonização por exploração”. Nas regiões meridionais - Brasil e Uruguai optaram pela “colonização por povoamento” com a mão de obra assalariada dos imigrantes europeus. Nas estâncias ocorria alguma forma de escravidão, mas semelhante aos escravos domésticos e aos negros de ganho.

Na região do rio da Prata a escravidão dos negros embora existisse não era o elemento fundamental do sistema econômico, pois quase todo o trabalho era realizado por mão de obra livre. O Uruguai é o único país da América do Sul que não apresenta população indígena sobrevivente, embora a passagem deles date de três mil anos A.C. Quanto à população com ancestrais negros são mais numerosos em Montevidéu.

Outro aspecto é que no segundo governo republicano de José Battle y Ordoñez – de 1911 a 1915-foram sancionadas as leis dos direitos trabalhistas, o processo de modernização do país que só acontecerá no Brasil após 1930 no primeiro governo Vargas e,sua Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) só surge em maio de 1943 com o Decreto-Lei nº 5. 452. A regularização do mercado de trabalho no Uruguai é mais antiga. Um contraste importante que ajuda a esclarecer seu vanguardismo no século XXI.

É claro que, toda a região da América Latina por ser subordinada aos padrões colonizadores fosse alvo de cobiça, e só se livrou dos ataques de navios internacionais quando se tornou jurídica e politicamente independente da tutela das metrópoles. Os países do cone sul junto com o Brasil e Paraguai passaram por inúmeros conflitos armados, em geral problemas fronteiriços, invasão de territórios e lutas separatistas (ver a Farroupilha no RGS). Esses embates percorreram um longo período, do século XVI ao século XIX. Sem a intenção de sintetizar essas disputas territoriais (ver Google e o elenco bibliográfico), em 1680 o Brasil invade o Uruguai e funda um forte que hoje é a Nova Colônia de Sacramento. De 1816 até 1824 Portugal e Brasil tornam a invadir o território vizinho fundando a Província da Cisplatina, recuperada pelo Tratado de Montevidéu em 1828 em que o Uruguai se torna estado independente. Entrechoques violentos ocorreram com a Grande Guerra – de 1839 a 1852. E, por fim a Guerra do Paraguai contra Solano López que uniu Brasil, Argentina e Uruguai na Tríplice Aliança de 1864 a 1870.

Os séculos posteriores acompanham os processos de transformação do capitalismo, mas a América do Sul continua subordinada aos interesses dos países mais ricos. Entraram numa fase de certa estabilidade política sem entreveros com a vizinhança, porém internamente passaram por ditaduras militares entre as décadas de 1960 a 1980 do século XX. Desenvolveram uma economia relativamente sólida e estreitaram seus laços diplomáticos e republicanos.

No século XXI tudo indicava que continuariam com a estabilidade social que haviam adquirido ao longo dos anos. Mas a crise econômica mundial iniciada em 2008 nos países centrais acabou fragilizando a América do Sul. Já na segunda década do século XXI, os índices de crescimento econômico e oferta de políticas públicas declinaram afetados pela crise global. Argentina e Brasil deram uma guinada da prosperidade à estagnação. Agora tudo se inverteu com o crescente desemprego e privatização da “coisa pública”. Os dois países governados pela direita radical se empenham em abandonar a política externa independente de fortalecimento do bloco latino-americano e dos BRICS. Os tempos mudaram e não se vê de imediato uma perspectiva de saída desta crise sistêmica.

O mundo parece caminhar da civilização à barbárie. É o momento de se fazer uma profunda autocrítica do significado da “democracia”. Temos de lembrar sempre que é o governo do povo para o povo, sendo assim deduzimos que os governantes voltados para as minorias financeiro/rentistas não são democráticos, pois não beneficiam as maiorias. O que temos é só o direito de voto. Mas se não nos dão a oportunidade de indicar candidatos nossos, a quais interesses servem? O Brasil desconhece os mecanismos de democracia direta. Contudo, temos perto de nós um país que tem um modelo de governança que está dando certo. Não podemos desistir de lutar por mudanças sociais. O Uruguai com sua proposta de terceira via – a Frente Ampla – nos faz reforçar o ponto de vista do economista Ladislau Dowbor” afastar-se dos ‘ismos’ e adotar uma posição ‘utilitarista civilizacional’ “(julho,2017).. Em termos de identidade econômico/espacial podemos elaborar estratégias futuras de união de um bloco latino-americano em prol de nossos interesses comuns.

Enquanto esse dia não chega podemos seguir o provérbio chinês: “Quando os ventos sopram contra a gente, a gente deve se proteger” (Tariq Ali, 2000).

ISABELA BANDERAS
Enviado por ISABELA BANDERAS em 15/10/2019
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