Apenas um coração solitário

O coração, nós todos sabemos, é um músculo, forte e bruto, incapaz de qualquer sentimento.

Os gregos, no entanto, a partir de Homero e alguns filósofos, atribuíam ao kardía, uma capacidade de amar e de direcionar a vida humana, a ponto de justificar suas loucuras.

O cancioneiro brega-romântico fala no coração, às vezes como uma entidade independente, uma força tirana, incontrolável: “Maldito corazón, mi alegra que ahora sufras, que llores e y te humilhes...” .

Os napolitanos cantaram o “Core ingrato”. O amor humano é engendrado pela psique, que resguarda os sentimentos, a memória e o dinamismo vital do ser humano. O poeta José Augusto adverte: "Agora agüenta coração,voc^einventou essa paixão...".

No fim de semana que passou, eu fiquei em casa, preparando algum material para um curso que iria ministrar nesta semana. Chovia. Como estou sempre sintonizado em um bom FM, em geral de música instrumental (Guaíba), escutei uma música que tem tudo a ver com o tema da atual crônica, e que foi sua força-motriz: “Apenas um coração solitário”.

Era uma das músicas preferidas de minha mãe, pessoa inteligente, como já disse aqui, de uma enorme sensibilidade, e solitária, como todas as pessoas assim. Não sei porque, mas os inteligentes são solitários...

E fiquei pensando no músculo cardíaco, transformado pela pena do autor em algo solitário, abandonado, sofrendo males de amor... Ninguém tem um “coração solitário” porque quer. São aquelas contingências vivenciais, o que Adler (+1937) chamou de “precipícios da alma”.

Às vezes a pessoa, como um palhaço do circo, é alegre e extrovertida, mas no âmago de seu ser, há um coração insatisfeito, irrealizado, em constante procura, solitário. O palhaço do circo, ri por fora mas chora por dentro. Embora em sua face exista uma aparência colorida, em seu peito há névoas a envolver-lhe o coração solitário.

Pois a música que escutei, e que deve ter quase cem anos, de Piotr Illich Tchaikovski (americanizada para “But a lonely heart”), só existe em versão instrumental, e fala em “apenas um coração solitário”.

Ora, “apenas” é um eufemismo, uma minimização formal de um problema. Quem possui um coração solitário, não tem “apenas um problema”, mas uma ponderável encrenca de vida.

Um coração solitário é exigente e esperançoso. Está sempre em busca de algo, em geral intangível, que o acalme. É medroso, covarde. Como já foi magoado, tem medo se entregar. É egoísta. De tanto sofrer, busca sua própria satisfação. Mesmo assim, é sonhador. Espera abrir-se e entregar-se...

(publicado em 18/11/99 - Quinta-feira)

(artigo premiado em 1999 - Flor de Lys)

Antônio Mesquita Galvão
Enviado por Antônio Mesquita Galvão em 04/11/2005
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