Desejo, Prazer e Amor – Princípios da Criação
O Homem alcança a libertação espiritual e,
por conseguinte, a sua perfeição, quando
chega ao conhecimento da Divindade,
em si mesmo, e torna-se consciente
do Espírito Supremo.
Filosofia hindu.
Em seu livro “A razão de Deus”, o escritor José Carlos de Assis afirma que não há como entender metafisicamente o processo de criação a não ser a partir da especulação sobre o desejo e a vontade de Deus. Nessa linha de pensamento Ele poderia ter criado o universo fora de si mesmo e com propriedades infinitas, porem não teria nisso outro prazer a não ser o de refletir-se a si mesmo numa coisa externa, na qual estivessem representados, num único instante, passado, presente e futuro. Essa é a forma como o senso comum imagina Deus: um ser pessoal sentado num alto trono dominando o universo, premiando os bons e punindo os maus.
Muitos se escandalizam com o desejo dos que, a procura da verdade, tentam entender a mente de Deus. No entanto, metafisicamente, a mente do homem é uma extensão da mente do Criador. A mente é o espaço comum entre o homem e o Divino. Tentar entender a mente de Deus é buscar entender a nossa própria mente. Por analogia, para descobrirmos a razão divina para a criação do universo, basta que investiguemos nossas próprias motivações para fazê-lo, caso tivéssemos poder para isso.
Convenhamos que um Deus que criasse um universo totalmente determinista, pronto e acabado seria um deus com muito poder, mas com pouca imaginação.
Quando cria um robô, seu projetista certamente sente prazer, porém este prazer termina logo após a sua conclusão, quando nada mais pode ser acrescentado ao mesmo. Não há um envolvimento mutuo entre criador e criatura ou criatura e outros seres, a não ser, interações predeterminadas por um padrão externo imposto pela mente do projetista. Nesse momento “esfria” o prazer do projetista sobre esta criação, e ele parte, geralmente, para o próximo projeto dando o primeiro por concluído.
Atualmente os cientistas trabalham na concepção de robôs que não sejam apenas um mecanismo repetitivo limitado por programas e padrões externos, e sim seres que além de inteligentes, tenham também emoções e iniciativa, que sinta e se mova por conta própria e seja capaz de comunicar sua subjetividade a seu criador e a outros seres, adquirindo, a exemplo de quem o criou, a capacidade de também criar.
Imaginemos alguém dotado do mais alto nível de conhecimento cientifico e que não tenha a companhia de ninguém capaz de entendê-lo, porém possua poderes, instrumentos e material indispensável a qualquer criação. Provavelmente, para sair de seu próprio isolamento se proponha a criar um autômato tão semelhante a ele quanto possível. Um ser com quem possa interagir. Com certeza não se satisfará em criar um ser mecânico limitado a movimentos repetitivos, a não ser, eventualmente como passo intermediário do processo. Certamente, utilizando um chip altamente especializado sensível ao ambiente objetivo, dotará o robô de todas as formas reativas de movimento e de toda capacidade de manipulação de objetos transformando-o no mais perfeito ser mecânico que sua inteligência ilimitada puder criar.
Com a aplicação de outro chip o engenheiro dotará o autômato de emoções e inteligência equipando-o com um processo pelo qual os perceptos dos sentidos serão fixados num meio físico permanente suscetível a um mecanismo de recuperação que acionará os efeitos subjetivos dos próprios perceptos. O chip captará o ambiente externo e comandará as reações do autômato. Num ambiente triste ele vai chorar; num ambiente alegre irá rir. Um chip suficientemente poderoso possibilitará equipar o autômato com toda gama de sentimentos movidos por forças externas, objetivas, no campo determinístico ou de casualidade. O mesmo pode-se inferir do atributo da inteligência: com o chip especifico, o robô terá condições de ativar a memória, avaliar o ambiente, comparar e testar eventos e tirar conclusões a partir de fenômenos do mundo objetivo ou interno e através de circuitos altamente sofisticados comunicará suas memórias, emoções e experiências ao mundo externo.
Mesmo com toda a capacidade técnica do cientista, ele, na verdade, não estará criando algo novo, mas simplesmente transferindo, pela via determinística, seus sentimentos e conhecimentos para o autômato. Para que este tenha autonomia, é preciso dotá-lo de autêntica subjetividade e esta subjetividade é inacessível a ele pela via determinística, independente dos poderes e sofisticação tecnológica dos chips com o qual foi construído. Este é o campo da autoconsciência e, num nível mais profundo ainda, o da intuição.
A autoconsciência encontra-se no limite da interação entre o mundo objetivo e o mundo subjetivo. Só somos conscientes de nós mesmos (subjetividade) porque nos diferenciamos dos outros (objetividade). Um chip de autoconsciência instalado no autômato não lhe dará autoconsciência, apenas lhe transferirá a consciência de seu criador numa forma objetiva. A intuição, por sua vez, é um evento não determinístico, portanto, quântico. Como tal, é imprevisível e incomunicável. Para dotar o autômato de autoconsciência e intuição, o engenheiro teria que fazer um chip tão poderoso quanto sua própria mente e instalá-lo nele. Mesmo assim, ambos ficariam fisicamente conectados pela inteligência e pela emoção, mas não pela intuição. Isso porque, a intuição surge da complexidade da mente individual em seu conjunto, e da complexidade reproduzida também do próprio chip, revelando-se como atributos independentes e subjetivos da mente e do chip. Não pode depender nem ser transmitido pelo cientista e sim brotar da “mente” do próprio robô. É que a intuição, em termos de Teoria do Caos pode ser interpretada como resultante da complexidade e da interação quântica de todos os atributos e faculdades da mente, assim como do chip, gerando um estado caótico que se organiza na forma superior de uma inspiração mental não causal, instantânea e claramente definida. Em suma, um chip tão poderoso e complexo quanto a mente humana, só poderia, em tese, ter intuição autônoma diferenciando-se do cientista que o construiu.
Com os poderes da intuição, o autômato poderia, também, criar outras coisas independentemente de seu criador. É que a intuição é exclusiva da consciência individual e brota de interações caóticas na fronteira entre o mundo subjetivo e o mundo objetivo, de uma forma não reproduzível em outra consciência, seja ela uma consciência humana, seja um gigachip. Os lampejos da intuição, oriundos do mundo quântico caótico, seriam captados pela consciência e transformados em movimentos e coisas. O criador observaria o mundo criado por sua criatura, o autômato, e ficaria maravilhado com sua criatividade e diversidade, além do que, ele próprio nem havia imaginado antes como possibilidade dessa criação. Sentiria sua própria obra sendo expandida e seu prazer não cessaria com a conclusão do autômato, pelo contrário, aumentaria com a criação do mundo criado por sua criatura e assim por diante.
Essa metáfora foi inspirada nos arcanos da filosofia hindu, em especial o poético Bagavad Gita, escrito milênios antes que se pensasse em chips. Kishna, na forma de Suprema Personalidade de Brahman criador de criaturas que também criam pela interação dos atributos feminino e masculino dele derivados, está presente em cada um de nós como Atman individual, partilhando a sua própria essência. Atman é o espírito universal, a Mônada Divina, o sétimo Princípio, assim chamado na constituição setenária do homem. É a alma Suprema. É como se cada um de nós tivesse incrustado na mente um chip que contem a essência divina e o poder criativo de Deus pela via mística da intuição. Nesse sentido, não somos deuses, em função de nossos condicionamentos materiais, mas Deus está em nós e nossa mente é um aspecto individual da mente divina.
A criação é o prazer de Deus; e a forma como Ele, fora do espaço e do tempo a tornou possível foi, segundo a corrente principal da física, a criação primordial do próprio espaço-tempo, no Big Bang, como ponto de partida do processo evolucionário da matéria e da vida. É axiomático que não há criação no plano material sem tempo e espaço: criação é o processo pelo qual alguma coisa no espaço se torna outra na mesma dimensão do espaço ao longo do tempo. Se a criação é o prazer de Deus, Ele se revela dentro da criação – portanto, no espaço-tempo por Ele criado – para experimenta-la. Ele faz isso participando da experiência dos seres evolucionários criados, na forma intuída pelos mestres hindus como Atman, presente esse nos humanos e, numa forma inconsciente, também nos animais, nas plantas e na matéria. Pela forma canônica, “Deus se fez homem e habitou em nós” e, de acordo com o Genesis, ele viu que o resultado de seu ato criativo era bom, o que significa ter sentido prazer na criação.
Para garantir que o processo de criação não se interrompesse no tempo, Ele transferiu aos entes criados sua própria faculdade de ter prazer na criação, dando aos animais, sobretudo na forma de prazer sexual, essa capacidade garantidora da reprodução da espécie e, no caso do homem e da mulher, além do prazer sexual, o prazer intelectual da busca do conhecimento e da sua aplicação na realização do novo. No caso da matéria inanimada, a estabilidade e a evolução da criação são asseguradas por um conjunto de forças atrativas e repulsivas entre partículas, num jogo que talvez não seja exagerado chamar de prazer quântico por sua natureza probabilística.
Suponhamos que um criador com poderes absolutos queira fazer uma sofisticadíssima nave espacial. Por ter poder absoluto, pode fazê-lo num instante, dentro ou fora do tempo e do espaço. Do mesmo modo, Deus poderia fazer num instante, toda a criação, assim como a criação da criação, tudo o que existiu, existe ou existirá no universo. Mas qual seria o prazer desse processo? Certamente não haveria o prazer de captar por uma câmera lenta o desabrochar de uma rosa, de ver-se transformar uma crisálida em borboleta ou de acompanhar o desenvolvimento fascinante da personalidade em formação de um bebê. Não haveria evolução. Tudo estaria pronto e acabado num instante e o Criador ficaria de fora de todo o processo criativo e evolutivo, sem participar dele.
Na concepção da principal corrente filosófica do hinduísmo, o Criador não cria robôs, mas seres nos quais se faz presente, como Atman, e com os quais partilha seus próprios atributos espirituais de emoção e razão, no campo comum do pensamento e da consciência. Esses seres, encerrados no tempo e no espaço da Criação, adquirem no curso de milhões de anos uma crescente capacidade criativa através da evolução por seleção natural e numa fase intermediaria desse processo, o nosso tempo, conseguem construir super navios, super aviões, naves e estações espaciais, manipulações genéticas e clonagem de seres. Na verdade, esses produtos da inteligência humana são atos indiretos do Criador universal, que realizam no prazer humano da criação o prazer de criação do próprio Deus.
A evolução é também probabilística e não apenas determinista, no sentido de que são infinitas as possibilidades de combinação genética nos seres vivos e de partículas elementares no cosmos. Com isso, a Criação é um campo aberto à experimentação do novo. E o Criador se dispensa a monotonia eterna de apenas saber o futuro dos seres e das coisas na dimensão do espaço-tempo. O futuro, nessa dimensão, está nas múltiplas interações do código genético e, para a matéria inanimada, nas leis quânticas da física, interpretadas como probabilísticas da corrente principal dessa ciência. Nesse sentido, Deus propositadamente se vela, deixando ao homem a tarefa de ir retirando progressivamente o véu da Criação com suas descobertas, elas mesmas criativas. Em outras palavras: ao contrario do que sugeriu o gênio de Albert Einstein, e parodiando Stephen Hawking: Sim; Deus joga dados. Essa é a forma de Ele ter o prazer de ver o surgir do novo num universo que, de outra forma, estaria tão estritamente definido como se concebia segundo as leis da mecânica clássica do século XIX.
Esse, pois, é o prazer da Criação como o prazer de Deus. Nele o papel dos humanos não é obedecer a Deus em estrito sentido religioso, e sim dar a Ele uma oportunidade de ter prazer através do prazer do próprio homem. Isso porque Deus, para ter prazer no mundo material, tem de estar no espaço e no tempo como ente espiritual e material, pelo que sugerem as escrituras védicas, participando intimamente da natureza humana, singularizado no Atman de cada homem e cada mulher. O prazer da criação evolutiva em escala animal realiza-se de forma inconsciente no ato sexual. Esse contém em si mesmo a experiência do prazer em seu mais alto grau, porem sem conexão consciente com a procriação. Só tardiamente, mesmo no homem e na mulher, pela aquisição do conhecimento biológico, o ato sexual foi relacionado com a procriação. Essa pode ser a origem da metáfora da expulsão de Adão do Paraiso Terrestre: o conhecimento do bem e do mal pode ter sido o conhecimento do prazer sexual como um objetivo em si, descolado do que se podia pensar ser o plano divino da perpetuação da espécie.
O prazer de criação de uma nova vida, no homem e na mulher, não se reduz ao fornecimento de um espermatozoide para fertilizar um óvulo. Há todo um processo de gestação e, posteriormente, de amor e cuidado com a prole, desde a primeira infância até a vida adulta. Por certo o prazer da maternidade e da paternidade existe também entre os animais, o que configura um plano superior que assegura a sobrevivência individual e da espécie como base essencial da evolução criadora em todos os domínios dos seres vivos superiores. É notável que esses dois instintos, o da maternidade e o da paternidade, existem também em relação a filhos adotivos, inclusive entre os animais, configurando sua autonomia em face do ato sexual.
A ciência contemporânea acentuou a separação entre o prazer sexual e a procriação por dois caminhos: aperfeiçoou métodos contraceptivos para evitar filhos e, no polo oposto, desenvolveu processos relativamente seguros de inseminação artificial para se ter filhos. Nenhum dos dois casos configura uma negação do sexo como fonte de prazer e da sobrevivência da espécie. Há, sim, uma tomada de controle do momento da procriação pela repetição de tentativas que visam aumentar as probabilidades da concepção. O conjunto de instintos e sentimentos envolvidos no processo criativo de um novo ser é complexo demais para ser eliminado por fatores culturais que, em termos de evolução da humanidade, estão sujeitos a contingencias econômicas, sociais, políticas e históricas.
Mesmo quando consideramos a evolução como um propósito divino, e o prazer sexual como instrumento da evolução, nos surpreendemos com a formidável carga de sentimentos que cerca o sexo entre humanos. Caso fosse apenas instrumento de evolução, a procriação poderia ter tomado as formas assexuadas das células elementares (partição por um processo de acumulação de energia), das plantas (inseminação sem contato físico) ou dos peixes (inseminação direta dos óvulos fora do corpo da fêmea). Entretanto, entre os mamíferos e os pássaros, o sexo requer uma interação física que transcende a individualidade. É um ritual. Um prazer a dois.
O homem e a mulher herdaram de seus antepassados primatas essa faculdade comum aos mamíferos e, no processo civilizatório, cercaram o sexo de um conceito quase místico, o amor, dando-lhe, no caso de alguns ramos do budismo tântrico e de outras escolas místicas, um caráter de transcendência de liberação espiritual. O elemento animal, simplesmente fisiológico, continua presente, mas a interação psicológica entre homem e mulher, no ato sexual, realiza um prazer sem paralelo, nos limites do êxtase. Isso não seria necessário para a evolução. É um produto da evolução e, como tal, encontra-se dentro do plano evolucionário divino. Em outras palavras: Deus deu aos seres humanos a faculdade de sentir prazer sem procriar e, no extremo oposto, deu ao homem e à mulher que querem procriar a possibilidade de o fazerem pela realização de um prazer que, como o êxtase místico, subjetivo e incomensurável, pode muito bem ser o mais próximo que podem ter do prazer de Deus.
Fontes bibliográficas:
A Razão de Deus – José Carlos de Assis – Editora Civilização Brasileira.
Bhagavad Gita – A mensagem do Mestre – Editora Pensamento.
Glossário Teosófico – Helena P. Blavatsky – Editora Ground Ltda.