Brasil ainda não tem nenhuma cidade plenamente ACESSÌVEL
Brasil ainda não tem nenhuma cidade plenamente acessível
Não existe no Brasil uma cidade que possa ser apontada como modelo de acessibilidade e, apesar dos avanços que o país tem alcançado, ainda são muito grandes os desafios para que tenhamos cidades plenamente acessíveis. A avaliação é das professoras Regina Cohen e Cristiane Rose de S. Duarte, coordenadoras do Núcleo Pró-Acesso da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), um núcleo de pesquisa, ensino e planejamento sobre Acessibilidade e Desenho Universal que é vinculado ao programa de pós-graduação em arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da UFRJ. Seu objetivo é a inclusão socioespacial de pessoas com deficiência por meio das atividades de ensino, pesquisa e projetos de Arquitetura e Urbanismo.
Inicialmente voltado para a eliminação de barreiras arquitetônicas e urbanas, o Núcleo é também um instrumento de conscientização em relação às condições de acessibilidade para pessoas com deficiência e idosos e tem acumulado premiações nacionais e internacionais. Uma das iniciativas bem sucedidas foi a implementação, no curso de arquitetura da universidade, de uma disciplina que visa à formação em acessibilidade do futuro arquiteto.
Nesta entrevista, as professoras falam sobre os principais problemas e conquistas na área de acessibilidade nas cidades brasileiras, os impactos de uma cidade deficiente na vida das pessoas com deficiência e dos demais cidadãos, as barreiras atitudinais, e ainda sobre o Núcleo Pró-Acesso e a acessibilidade nas universidades.
Rede Mobilizadores – Quais os principais problemas de acessibilidade nas cidades brasileiras?
Regina: Em termos de Brasil, não existe uma cidade que conseguiria apontar como exemplo em acessibilidade. O que existem são soluções pontuais e não planejamentos amplos, em que todos os itens da acessibilidade plena ou do desenho universal sejam contemplados.
Trataria para começar a questão fundamental dos transportes que não seguem os princípios do Desenho Universal. Tenho visitado cidades que se orgulham de dizer que são consideradas modelo em termos de acessibilidade. A frota de ônibus está toda adaptada com aqueles elevadores hidráulicos, quando hoje reivindicamos o ônibus de piso baixo. A maioria dos motoristas não está nem preparada e estes equipamentos, em geral, estão quebrados pela falta de uso.
Considero o transporte de Curitiba relativamente bom, mas os espaços urbanos não são ideais. No Rio de Janeiro, avançamos muito na acessibilidade urbana com o Projeto Rio-Cidade, que ainda não é o ideal, mas os transportes e muitas edificações, inclusive públicas, ainda não são acessíveis.
Parece que São Paulo tem evoluído bastante em muitos pontos. Isto para só falar dos grandes centros urbanos. Em algumas pequenas cidades, também tem acontecido muita coisa. Sem transporte acessível para todos, a pessoa com deficiência não chega a lugar nenhum.
Temos, ainda, problemas sérios de pavimentação das calçadas em todas as cidades brasileiras, o que dificulta a circulação de pessoas em cadeira de rodas, idosos, mulheres com saltos altos, obesos e outras pessoas com mobilidade reduzida.
Também ainda é muito raro rampas de travessia de ruas bem executadas, sinalização tátil direcional e de alerta, sinais sonoros e informações em braile para as pessoas cegas. Placas ou painéis de informação sem avisos com letras grandes ou com contraste de cor para as pessoas com baixa visão. Sinalização visual em lugares importantes, com avisos para as pessoas surdas. Aqui pode-se mencionar os aeroportos.
A lista, apenas nos espaços urbanos, é enorme. Nas edificações, começamos pelo próprio acesso a estas, sem falar em muitos outros detalhes.
Rede Mobilizadores – O que é preciso para resolver estes problemas?
Regina: Em 1999, participamos do trabalho desenvolvido na Secretaria de Transporte do Estado do Rio de Janeiro, onde pudemos contribuir com nossa experiência adquirida na melhoria dos diversos modais do estado (metrô, trens, ônibus, barcas, aviões). Foi feito um extenso trabalho de conscientização dos profissionais desses diversos setores, que iniciaram processos de adaptação de suas instalações e de seus veículos. As empresas de ônibus foram as que ofereceram a maior resistência e até hoje encontramos dificuldades nesse setor.
Em primeiro lugar, é necessário vontade política e um planejamento interdisciplinar. Todos os setores devem estar envolvidos. A acessibilidade não diz respeito apenas aos transportes e vias públicas. É necessária a participação de todas as instâncias decisórias no planejamento de uma cidade.
Um grande projeto seguindo os princípios do desenho universal envolveria todos os setores responsáveis pelo planejamento urbano, edificações públicas, pela construção civil, espaços de turismo, cultura, esporte e lazer e pelos diversos coordenadores das áreas específicas de atuação.
Não acho que deva existir um grande projeto visando apenas a questão da acessibilidade e sim que o tema seja incorporado em cada ação e em cada projeto de reformulação urbana. Por exemplo: a cidade do Rio de Janeiro em breve sediará os Jogos Olímpicos e Paralímpicos – RIO 2016. Este é um momento fundamental, a acessibilidade deve ser pensada de forma ampla e ser incorporada em cada uma das iniciativas.
Um grande projeto, por sua vez, envolve todas as mudanças que possam ser defendidas e concretizadas em espaços de saúde (hospitais, clínicas, postos de saúde e consultórios), educação (escolas e universidades), cultura, lazer, esporte, praças e parques, pontos turísticos e também nos espaços urbanos e nas edificações públicas e privadas.
A inclusão de disciplinas em todos os currículos acadêmicos também é muito importante. A formação em acessibilidade do futuro arquiteto é imprescindível. Os resultados alcançados com a implementação da disciplina, pelo Núcleo Pró-Acesso da UFRJ, no curso de Arquitetura e Urbanismo, têm sido fabulosos. Alguns dos alunos que já se formaram levaram, para o resto de suas vidas, a lição e a experiência de se projetar para todos e isto tem um efeito multiplicador fantástico, que não se pode medir.
Nossa iniciativa foi pioneira e nossa metodologia, que tem ampla aceitação de várias entidades, fez com que conquistássemos um prêmio internacional. Esta foi uma grande vitória, mas ainda vislumbramos a possibilidade de incorporar a disciplina em toda a grade curricular das faculdades de projeto em geral, e não complementarmente, como ocorre. Mas para isso será preciso formar professores, o que é uma outra luta.
Rede Mobilizadores – A senhora percebe mudanças positivas na área de acessibilidade no Brasil? Se positivo, quais?
Regina: Com toda certeza, as dificuldades encontradas pelas pessoas com deficiência nos espaços interferem na sua inclusão. Podemos citar amplas pesquisas feitas pelo Núcleo Pró-Acesso da UFRJ.
Fizemos um extenso levantamento das barreiras físicas encontradas em quatro áreas centrais da cidade do Rio de Janeiro. Às vezes, a burocracia e a resistência de algumas pessoas são maiores do que as barreiras físicas.
As barreiras comportamentais são as mais difíceis de eliminar, pois para todas as outras acreditamos que podemos encontrar soluções que atendam de alguma forma. Claro que houve avanços, mas ainda estamos muito longe de alcançar um grau desejado de inclusão e de cidades brasileiras plenamente acessíveis.
Rede Mobilizadores – Por que as barreiras atitudinais são mais difíceis de serem vencidas do que as barreiras físicas?
Cristiane: As barreiras atitudinais são fruto do preconceito, da insensibilidade e da ignorância. Já estamos no século 21 e ainda encontramos muitas pessoas que rejeitam os “diferentes”, criam normas sem a consciência do outro, produzem estereótipos.
Muitas vezes, ao considerar que a deficiência deve receber assistencialismo ou “solidariedade especial”, a pessoa já produz uma visão que estigmatiza o outro. Algumas atitudes estão tão enraizadas na sociedade que, quando as apontamos, causamos estranheza. E é essa atitude que acaba se materializando nas barreiras físicas.
Para superá-la, precisamos promover uma educação social e cultural que aceite a diversidade de características humanas, que modifique a concepção de sociedade, de direitos e deveres, de igualdade de oportunidades frente ao mundo em que vivemos.
Parece uma tarefa hercúlea… mas quando ela estiver em curso, as barreiras físicas certamente desaparecerão também.
Rede Mobilizadores – Qual o impacto de uma cidade deficiente em acessibilidade na vida de uma pessoa com deficiência?
Cristiane: Uma cidade deficiente segrega, isola, discrimina. O impacto na vida das pessoas é imenso. Quando existem situações ruins de acessibilidade, muitas pessoas com deficiência deixam de ir às ruas, isolam-se, preferem ficar em casa interiorizando o olhar preconceituoso da sociedade…
Assim, não apenas pessoas com algum tipo de dificuldade ou deficiência, mas TODAS as pessoas são prejudicadas se a cidade não for acessível, porque as barreiras de acessibilidade impedem o convívio entre cidadãos e acentuam as diferenças. A cidade fica menos plural, mais empobrecida social e culturalmente.
Rede Mobilizadores – O que é o Núcleo Pró-Acesso da UFRJ e quais seus principais objetivos?
Cristiane: O Núcleo Pró-Acesso é um núcleo de pesquisa, ensino e planejamento sobre Acessibilidade e Desenho Universal que é vinculado ao programa de pós-graduação em arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da UFRJ. Ele é formado por pesquisadores, estudantes, professores e técnicos e tem por meta a inclusão socioespacial de pessoas com deficiência por meio das atividades de ensino, pesquisa e projetos de Arquitetura e Urbanismo.
Inicialmente voltado para a eliminação de barreiras arquitetônicas e urbanas, o Núcleo é também um instrumento de conscientização em relação às condições de acessibilidade para pessoas com deficiência e idosos.
O Núcleo acumula resultados e premiações nacionais e internacionais importantes além de promover seminários e congressos, prestar consultorias em adaptações de projetos visando à acessibilidade para todos, e ministrar cursos de extensão e de pós-graduação lato-sensu sobre acessibilidade ao meio físico.
Rede Mobilizadores – Quais sãos os aspectos mais importantes para tornar uma universidade acessível? Como avalia as universidades brasileiras no quesito acessibilidade?
Cristiane: Como já dissemos em alguns artigos, nós entendemos que, quando um único aluno for impedido de entrar numa biblioteca ou numa sala de aula pela simples existência de uma barreira física, a função educadora da Universidade estará sendo colocada imediatamente em xeque.
Apesar de as universidades serem reconhecidas como um dos pilares da democracia, produtoras de tecnologia e berço das ideias avançadas, nossas pesquisas têm demonstrado que no Brasil, infelizmente, ainda há muito caminho a ser percorrido no que diz respeito à inclusão social. Fala-se muito em abrir espaço para as camadas sociais menos favorecidas nas universidades, mas essa abertura também deveria significar o acolhimento de toda a diversidade humana, incluindo as pessoas com deficiência sensorial, física ou intelectual.
A realidade que temos encontrado mostra espaços universitários cheios de barreiras físicas e atitudinais; além de funcionários, gestores e docentes despreparados e pouco sensíveis à questão das pessoas com deficiência. Em nosso entender, não seria muito difícil remover as barreiras e sensibilizar as pessoas: mas seria necessário, contudo, muita vontade política para iniciar o processo