ATEÍSMO : UNS APONTAMENTOS
Não há nada de errado em ser ateu.
Esqueçamos, por ora, a afirmação do filósofo Peter Kreeft, segundo a qual ateísmo é coisa de idiota, vejam só!Deixemos barato as associações irresistíveis que nós, não-ateus, fazemos entre ateísmo e genocídio, assassinato em escala industrial tal qual o mundo o conheceu no orgulhoso século XX. Os expoentes máximos do pensamento, naquele momento triste da história, Darwin, Freud, Marx e Nietzsche, talvez já tenham sido injustiçados o suficiente, incompreendidos e mal interpretados.
Digamos que o zeitgeist não seja válido para a incontornável evidência dos fatos, e no fim das contas a relação entre cultura e história seja apenas circunstancial, supondo ser possível estabelecer relações de causa e efeito a partir de tais elementos, cultura e história.
Nenhum de nós estava lá, não é mesmo?
Você apertou algum gatilho? Lançou alguma bomba? Mandou alguns milhões de pessoas para a morte em nome de uma causa, em nome de um-mundo-melhor ? E se estivesse lá, faria de outro modo o que foi feito?
Não, não sejamos hipócritas.
Concentremos nosso foco nesse fenômeno tomado em si mesmo, na perspectiva do presente, ser pura e simplesmente ateu, nada mais.
Não há problema algum em não crer no que quer que seja, muito menos crer no que quer que seja, suponho. Não há problema em não ser religioso, e a crítica à religião por si só é uma manifestação da liberdade de consciência, e, quando exteriorizada, manifestação da liberdade de expressão.
Nada disso é condenável em si mesmo uma vez que, no atual estágio do processo civiizatório ocidental, não há nada que esteja acima de crítica.
Ser ateu, por definição, consiste em não aceitar a possibilidade da existência de Deus como algo razoável -- mais que não acreditar, apenas, na existência de um ser transcendente, é afirmar categoricamente a inexistência para além de qualquer dúvida razoável.
É uma visão de mundo e, como tal, repercute em praticamente todas as esferas da constituição do indivíduo enquanto ser auto-consciente e moral.
Não há, insisto, problema essencial nessa posição. O problema está em não perceber as implicações dos pressupostos assumidos quando é o ateísmo o filtro pelo qual se elabora a realidade. O problema é assumir o ateísmo como verdade fundamental, e não apenas opinião pessoal ou uma questão de gosto, como o queria Nietzsche, axioma inatacável opaco mesmo ao escrutínio da própria razão.
A dinâmica do auto-engodo, em geral, manifesta-se da seguinte forma :
1. Se há verdade no ateísmo, não há Deus, nenhuma religião é legítima.
2. Se não há Deus e toda religião é falsa, tudo que se baseie em fé e religião é igualmente falso e inconsistente.
3. A estrutura mesma da civilização estaria equivocada, uma vez que nada foi erguido e mantido na história do mundo sem a religião.
4. Equivocada como está, a ordem estabelecida demanda revisão e reforma, quando não uma completa substituição por mecanismos outros de pensar e gerir o mundo, já que todas as desgraças experimentadas até o momento presente podem e devem ser imputadas à velha ordem.
Isso tudo é admitido tacitamente, não declarado aos quatro ventos com estardalhaço, mas é o desdobramento óbvio do fenômeno. Os sintomas dessa condição costumam vir à tona como defesas ou manifestações de desconforto com a fé alheia, e com o Deus que não existe.
NÃO MATE O MENSAGEIRO
Nem todo ateu adquire sua peculiar cosmovisão a partir de questionamento sincero.A dúvida costuma ser atiçada até o ponto em que ainda seja conveniente continuar duvidando metodicamente . Quando tal ceticismo chega a ser fator de desconforto emocional, o ateu passa a ser um crente na sua descrença pessoal, talhada para o quanto possa suportar sem abrir mão de suas certezas fáceis e convenientes.
Não há muita honestidade nessa espécie de fideísmo às avessas.
Em sua forma mais rudimentar, o ateísmo não é teoricamente consistente, apenas toma por fato a suposta impossibilidade da transcendência e do sobrenatural, e a respeito dessas questões não se ocupa com profundidade ou alguma atenção. Ao contrário de linhas militantes do ateísmo, fundamentadas em certa "hermenêutica da suspeita" (Paul Ricoeur 1913 -- 2005), que empregam tempo e energia no heróico combate ao que afirmam não existir, a maioria dos céticos práticos não dá a mínima para debates, argumentos e evidências , contra ou a favor de sua posição. Não importa, para eles -- é como se soubessem que no fim das contas não se trata de uma questão de provas e demonstrações.
Deus, supondo que não exista, não pode incomodá-los, afinal.
Talvez, mas o fato de negar a existência de Deus não implica na correspondente negação aos que aceitam a existência de Deus com igual segurança. Talvez seja verdade que Deus não incomoda o ateu, mas no que diz respeito à religião a história é bem outra.
Há motivos para algum desconforto em relação aos que professam alguma fé?
Provavelmente, a começar pela pregação do evangelho, que deve chatear em maior ou menor grau, quase como quando somos abordados por vendedores ambulantes que tentam empurrar artigos dos quais não precisamos. Ninguém gosta de proselitismo.
Há, de qualquer forma, desconforto em relação a tudo que a religião apresenta como verdadeiro, em relação a liturgias e seu significado, em relação a um ideal de compromisso numa esfera de abrangência que escapa à apreensão desprevenida do incrédulo.
Há desconforto sobretudo em se perceber moralmente desautorizado e amaldiçoado pela narrativa do livro sagrado daqueles que acreditam. O livro diz que ser bom não basta. Pior, o livro diz que não há "bom" e que o estilo de vida dos incrédulos leva a uma eternidade de danação.
Como reagir a isso? Como o ateu típico pode lidar com tal realidade?
Reage à maneira do homem primitivo, tentando destruir aquilo que não conhece e que, portanto, é fonte de seus medos mais profundos, aqueles que despertam as reações mais desarrazoadas.
Movido pela necessidade de atenuar o que é a causa de seus incômodos, o ateu buscará descontruir o discurso que lhe soa tão estranho. Será capaz do que se lhe afigura como loucura, como ler os livros sagrados dos crentes, expor o que entenderá como incongruências, denunciar o que soe machista, xenofóbico, violento, misógino, intolerante e obsoleto.
O problema da crença são os crentes, entende o cético, o Deus deles possui uma assessoria de marketing deplorável, e a publicidade é um tiro no próprio pé. Como esperam que alguém minimamente razoável ainda creia em seus disparates?
Nesse ponto algumas noções estão bem claras no mecanismo de negação ateísta :
---> crentes não são perfeitos, logo, Deus não existe;
---> o livro sagrado dos crentes não faz sentido, Deus, portanto, não existe;
---> se Deus existisse, conforme afirma "o livro", não seria um Deus "do bem";
---> mais que isso, se Deus existisse, seria um carrasco cruel e indiferente com o sofrimento humano.
Essas percepções, claro, são elaborações afoitas a respeito do que não é, absolutamente, investigado com as devidas prudência e atenção necessárias a quem busca a verdade. O norte da especulação ateísta é o do conforto emocional e da recompensa hedonista imediata. A decepção para com o que venha a encontrar em sua impaciente espiadinha na religião não chega a surpreender nem a si mesmo.
"PERDENDO A MINHA RELIGIÃO"
Para todos os efeitos, na perspectiva do ateísmo contemporâneo, o homem criou Deus (Feuerbach, 1804 --1872) tão somente para matá-lo (Nietzsche, 1844 --1900),ainda que desse processo advenha o resíduo que intoxicará indefinidamente esse mesmo homem (Marx, 1818 --1883).
A elaboração racional da defesa deicida pode não parecer muito sofisticada ou atraente, de fato, mas já fornece alguma fundamentação ao que soa tão deslocado no mundo cristianizado demais para céticos, religioso demais para os irreligiosos.
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Quid murmurabit homo vivens, vir pro peccatis suis?
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De que se queixa o homem, afinal?
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Diversas são as razões pelas quais o homem se decepciona com a religião, destaco apenas duas :
1. A desilusão causada por algum evento vivenciado na prática religiosa, como a má conduta de terceiros, ou abordagem inadequada por parte de sacerdotes, anciãos, obreiros, etc. Os inúmeros casos de assédio sexual e pedofilia, verdadeiros e fartamente documentados, evidenciam tais situações. Algumas configurações eclesiásticas acabam por fomentar esse tipo de aberração, seja por relaxamento de critérios de verificação de legítima vocação para o sacerdócio, como ocorre na igreja católica a partir dos anos 50 (tal qual sugerido no THE RITE OF SODOMY, Randy Engel) , seja por desestimular a denúncia do crime às autoridades civis, como é o caso da Sociedade Torre de Vigia das Testemunhas de Jeová, que tende a "resolver" tudo com os anciãos da instituição, com o recorrente "há tempo de falar e tempo de calar" , deixando claro que para vítimas de abuso sexual, naquela instituição, há apenas "tempo de calar".
2. A constatação de que Deus não é o ser mágico, aparentado com o Papai Noel, que existiria apenas para satisfazer as vontades egoístas de seus mimados seguidores, ineptos em seu próprio amadurecimento, indispostos a lidar com a perda, o sofrimento e toda sorte de eventos pelos quais todos devemos passar a fim de nos tornarmos humanos maduros.
Tal equivocada percepção, aqui, alimenta certo discurso ateísta segundo o qual Deus, supondo que exista, não pode ser bom uma vez que permite que coisas desagradáveis aconteçam a pessoas "boas".
Novamente, em parte esse tipo de raciocínio mesquinho (e teologicamente atrofiado) é consequência da irresponsabilidade da própria instituição, que enfatiza aspectos atraentes de sua literatura e omite ou não esclarece a integralidade de suas convicções. Certas tendências no meio evangélico são típicas nesse sentido, como as denominações orientadas pela "teologia da prosperidade", por exemplo, e o assim chamado "movimento apostólico".
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