Um mergulho na Lagoinha

A interessante série de livros de bolso A Cidade de Cada Um, sobre Belo Horizonte, começa justamente com o título Lagoinha, obra magistral de Wander Piroli. A série hoje já dobrou a trintena de títulos, e tenho fé que mais virá. E tenho quase todos eles, adquiridos, ganhos e até mesmo na mão de terceiros, todos com chances de boa circulação, e quiçá até de retorno...

O Colégio Estadual, a Praça Sete, o Colégio Sacré-Coeur de Marie, o Montanhez, a Serra, a Rua da Bahia, o Cine Pathé, são alguns dos títulos que logo me saltam à memória. Todos eles, repito, fonte de tanta e variada lembrança, como retalhos que vão formando essa gigantesca colcha...

Da minha primeira lida à Lagoinha achei-o pouco palatável, com a descrição crua do cotidiano e sobretudo, o noturniano desse logradouro que seria o umbigo da cidade. Umbigo, ou terminal excretor...?

Mas não demorei a me identificar com o que de fato a vida é, vida e morte até. Sem o glamour, pois é. E Piroli é um mestre na concisão, narrativa cortante, e de precisão.

Parte menos opulenta da cidade, a Lagoinha - e nem sei lá há ou houve lagoa... - me cobra também um tiquinho de lembranças, senão ligações até, ainda que salteadas, perfunctórias...afinal, além de ter morado por um par de anos numa elevação vizinha, o Alto Colégio Batista, em 1972 e 73, a Lagoinha não deixou de ser roteiro de muita passagem minha. No geral, era o caminho de ida e volta com o campus da UFMG, que frequentava pelas manhãs. Os ônibus passavam lotados, mas sempre se arranjava um jeito de se enfiar naquela ávida turba estudanto-obreira. E os pontos parada eram bem no início da Avenida Antônio Carlos, que nasce na Lagoinha.

Uns três ou quatro episódios de minha vida, no entanto, fugiram desse roteiro. Ou seriam 5 ou 6? Verdade é que minha primeira noção da Lagoinha veio num par de sapatos que papai, visitando BH, me levara para Pitangui, cidade nossa, onde eu "havera" de ter meus 15 ou 16 anos. Os sapatos, marrons, tipo mocassim, de couro até no solado tinham a particularidade de um centímetro a mais no salto, o que me assegurava alguma melhoria de status para encarar as moçoilas. E o embrulho do pisante também me chamou a atenção, com a inscrição tentadora: O Cobrão da Lagoinha, cobra menos...e naturalmente o desenho-logo de uma serpente...

Já meu primeiro contato físico com a Lagoinha, deu-se numa tarde uns dois ou três anos depois, quando eu já aprovado no vestibular de Letras da UFMG, começava a tomar contato com a cidade que lhe acolheria pelos próximos seis anos e meio...calcante piedi, caminhante, como na referência machadiana em Capitu. Não sei se ainda com aqueles mesmos sapatos que papai ali me comprara, e tampouco pude me deparar com a imponente loja do Cobrão da Lagoinha. Talvez andasse circunspecto, a busca do que fazer para enfrentar a nova realidade, de vida universitária e de procurador...de emprego para manter-me na vida capitalesca...

E por uma casualidade, já na direção da rodoviária, que era a ainda antiga, eis que me deparo com o conterrâneo Milton, atrás do balcão de uma relojoaria. Uns 4 anos mais velho do que eu, Milton, filho de um Neném Relojoeiro de Pitangui, respondeu à minha saudação e me deu uns três dedos de prosa, coisa que ainda não havia acontecido em nosso relacionamento de vizinhos até então. E que não teria novo capítulo.

Uma outra de minha ida à Lagoinha, uns poucos meses depois, foi noturna, tipo la prima notte di un uomo, com destino pre-fixado, à rua Rútilo, que entre passantes, taxistas e notívagos era simplesmente paroxítona. A noite embora tão antecipada, não durou mais de uma vintena de minutos. Um outro neófito que me fez companhia, conterrâneo, e colega de Faculdade talvez tenha uma história um tanto diferente, embora tenhamos ambos incorrido na tarifa bandeira dois...Nosso mentor, o João Lúcio, o Jean Luc, já experimentado, continuou professoral como lhe aprazia, mas ao que nos consta levou o segredo para o campo santo, embora torcêssemos ambos para que o céu não fosse o destino daquele causídico-filósofo itaguarense...pois se lá resolvesse espalhar seus conhecimentos...

Outro contato direto e de terceiro grau com a Lagoinha, também noturno, foi quando em fins de 73, caminhando pela Antônio Carlos, fui arrolado com três outros companheiros para compor a lotação de um camburão que fazia a blitz antes para triar depois, na Central de Polícia da Lagoinha. Foram umas 4 horas de perplexidade atrás das grades, em companhia das mais variadas índoles. De pé, até a soltura dos 4 em plena madrugada, livres, leves e revoltos...O lado histriônico, se é que se pode classificar assim foi quando ganhando a Avenida, em meio ao breu madruga, comentei com o conterrâneo violeiro, Rohr, - os outros dois companheiros acidentais eram irmãos belorizontinos:

- É Rei, embora libertados, nossa reputação vai pras cucuias. Na edição de hoje do Estado e do Diário já vai sair a notícia de nossa prisão...Cê já pensou com que cara vamos encarar nossas famílias, nossos colegas, amigos, as musas...?

Rohr apenas baixou a cabeça. E, ainda me pergunto como, conseguiu chegar à porta da banca de revistas em Pitangui antes de primeiro ônibus que levava os jornais. O que não sei agora é se ele negociou uma leitura detida das páginas policiais ou se achou melhor comprar toda a coleção, de uma vez, por medida de segurança...Lagoinha, never more...!

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 03/02/2019
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