Dor de Amor

Caso tivesse eu um dia que, por vingança ou castigo, impingir uma dor a um desafeto ou inimigo, não lhe destinaria uma dor física. Nem tampouco lhe privaria da liberdade. Nem mesmo à morte o condenaria.

Caso tivesse eu um dia que decidir a respeito de um verdadeiro castigo a quem o merecesse, faria com que tal pessoa sentisse uma dor de amor.

Nenhuma dor das que existem no mundo é capaz de ferir mais, de forma tão lenta, com feições e modos tão variados quanto indefiníveis.

Não falo da dor de amor causada por grande decepção, motivada por desapontamento com atitudes da pessoa amada. Não falo da dor de uma traição. Não falo do amor transfigurado em mágoa ou ódio.

Essas são dores mais óbvias.

Podem muito bem mostrarem-se intensas e desatinar as mentes menos preparadas para lidar com as perdas. Mas são dores com razões claras e destinadas à cicatrização inevitável, ainda que, porventura, lenta.

Não são dores de amor: são dores de desamor.

Eu falo – tento falar – de outra coisa!

Falo da dor de estar apartado da pessoa por quem se sente admiração, carinho, ternura, desejo – todas essas coisas que somadas resultam no que se convenciona chamar de “amor” – por razões imprecisas, inexatas. Quando tudo isso, todas essas coisas ainda estão ainda lá, existindo, vivendo, com toda a força – porque nenhum fato ocorreu que decretasse sua “morte” –, mas algo de errado aconteceu para inviabilizar ou interromper o “relacionamento”: essa palavra odiosa que deveria ser banida da língua portuguesa!

Então, sem razões para desamar, você, sem ter outra opção, condena-se a amar na ausência e vivencia – aí sim! – a verdadeira dor de amor.

A dor de amor é traiçoeira. Ela ataca de formas diferentes, em momentos inesperados e em muitos graus de intensidade.

Você nunca sabe quando e como ela vai atacar e, por isso mesmo, jamais está preparado para ela. Você pode até estar num dia particularmente bom, aparentemente sob controle, mas um fato qualquer ocorre para atiçar aquele bichinho que vive lá no seu íntimo. Pode ser um aroma, um perfume. Pode ser uma canção que se ouça sem querer, na rua – músicas são particularmente cruéis nessas situações. Pode ser um lugar pelo qual se passe e que lhe traga uma recordação intensamente feliz – mas que a ausência da pessoa amada se encarrega de transformar em dor cortante. Pode ser a mera visão de um casal andando de mãos dadas – e você, de repente, sente uma incontrolável vontade de chorar, sem precisar exatamente a razão: apenas sente dor.

O tempo é o grande parceiro da dor de amor, ao contrário do que muitos dizem. Ele não é “remédio”: pode sê-lo para a “outra” dor, a do desamor, a das decepções – mas não para a dor de amor! Para quem sente dor de amor, o tempo torna-se grande demais, torturante demais, insípido demais. Você tenta entrar em acordo com ele, tenta preenchê-lo fazendo toda sorte de coisas, a maioria sem qualquer sentido e algumas bem idiotas. De nada vai adiantar: no final, sempre haverá tempo o bastante para continuar sentindo dor.

Você não enxerga graça verdadeira em nada e em ninguém – e todas as outras pessoas do mundo, mesmo uma ou outra por quem se sinta carinho real, admiração real ou até mesmo algum desejo, ficam relegadas ao papel de coadjuvantes do seu filme triste: e você não tem dúvidas de que trocaria toda uma vida ao lado dessas pessoas por um único e último dia que fosse, desde que ao lado da pessoa que ama.

Você revê fotos, vídeos, bilhetes, e-mails, à exaustão. Você se veste para a pessoa amada – ainda que não haja sequer esperança de encontrá-la casualmente, na rua. Você imagina o que ela diria diante de inúmeras situações, de uma reportagem na TV, um filme, uma coisa corriqueira qualquer. Você conversa com ela, ainda que ela não esteja presente, muitas, muitas vezes. No princípio discutindo a relação e falando com muita convicção dos seus motivos para continuar acreditando nela. Depois isso passa e você, feito um lunático, passa a conversar rotineiramente com um “fantasma” – bate longos papos, conta piadas, faz comentários, ri e chora na “companhia” dele. Sem notar, você passa a conviver com um ausente – e a ausência passa a ocupar-lhe a vida, como fosse mesmo um namorado.

Quem sente dor de amor faz muitas coisas imbecis. Muitas. Você entra numa loja de cosméticos e pede que a atendente lhe dê uma amostra da fragrância “tal” – aquela que a pessoa que você ama usa – e sai da loja levando um pedacinho de papel umedecido como quem carrega uma pepita de ouro, para ir cheirar lá na outra esquina. Você desprograma o toque especial de celular, aquele que identificava a chamada da pessoa amada, simplesmente para que a cada vez que o aparelho toque, você tenha alguns segundos de esperança de que seja ela! Você se “proíbe” de ouvir determinadas canções e de ler certos poemas porque os mesmos lhe causam dor colossal. Você acredita em tudo, em rezas, promessas, toda a sorte de simpatias e mandingas. Você confere a sua caixa de e-mails setecentas vezes por dia. Você espera. Quem sofre de dor de amor vive esperando.

Você sente saudade até do que nem gostava muito – das manias, dos momentos de mau humor – e passa a se lembrar com espantosa precisão de pequenos detalhes aos quais antes mal dava atenção: o formato dos dedos das mãos; o jeito de mastigar; um beijo bobo que ele lhe dava nos cabelos enquanto assistiam filmes no sofá; uma pinta que ela tem perto da orelha direita; o som das batidas do coração da pessoa, quando adormecida.

Você sonha. Sonha muito, dormindo ou acordado, pouca diferença faz. Você abraça o travesseiro. Você beija o batente da porta. Você imagina cenas de sexo e paixão. Você ouve gemidos de prazer.

Sentir dor de amor é um pouco como ser viúvo de alguém vivo.

Sente dor de amor quem deu o melhor de si, entregou-se como nunca o fizera na vida, ao encontrar a pessoa capaz de tocar-lhe a alma e no entanto olha em volta e nota-se mil vezes mais sozinho do que antes dela aparecer.

Sente dor de amor quem saiu voluntariamente de uma relação por qualquer que seja a razão, jurando que de nada sentiria falta e no entanto acorda um belo dia com o corpo suado, o coração aos pulos e com todas as fibras clamando de desejo por quem já não se tem mais.

Sente dor de amor quem sente que a melhor parte de sua vida lhe foi arrancada – ainda que lhe esteja óbvio, claro, cristalino como água, que nenhuma razão é forte o bastante para justificar tal fato.

Sente dor de amor quem experimentou o sabor de uma grande paixão, mas – por estupidez, imperícia ou medo – não se sente capaz de fazer um romance “caber” na vida – e opta por um caminho supostamente menos doloroso, condenando-se deliberadamente a uma vida pela metade.

Dor de amor – que é basicamente formada por saudade – precisa ser sempre acompanhada de uma saudável dose de inconformismo. De esperança. De fé.

Porque o maior risco da dor de amor é acostumar-se com ela – recorrendo vez por outra, para atenuá-la, a algum analgésico qualquer. Conviver com ela como quem convive com uma outra dor crônica, um reumatismozinho, uma dor muscular que vai e volta, sujeita às variações climáticas. Aceitá-la e enganá-la (ou “enganar-se”!) com algum artifício, assim como fosse uma miopia – você sabe que ela existe e está lá, mas coloca suas lentes de contato e ninguém percebe – e até você mesmo chega a se esquecer dela na maior parte do tempo.

Acostumar-se é aceitar. Aceitar é deixar de lutar.

Quem deixou de lutar é porque já não acredita.

E quem não acredita – ainda que não perceba – já está morto.

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