Texto no qual homenageio o autor e a Nossa Língua, tão cansada:
“O que quer/o que pode esta língua?”(Caetano Veloso) Ângelo Torres, realizador, ator, contador de histórias, santomense a viver em Lisboa, atende o telefone: luso-quê?! Luso-fonia, insisto. A voz vai mudando do outro lado do telefone – escritores, cantores, Lisboa, Rio de Janeiro – mas mantém-se o tom: ninguém sabe dizer o que é, ao certo, a lusofonia, se existe, e ainda que exista, talvez não baste. É preciso discutir, discordar, estrebuchar, concordar, amar perdidamente, ficar insatisfeito, porque bom, bom, era a utopia, aquela dos tempos de descobrir o mundo. Como se o mundo não existisse antes de nós o dizermos – em português. E é como se cada falante herdasse com o código genético da língua, os versos de O quinto império, de Fernando Pessoa: “Triste de quem vive em casa,/contente com o seu lar”. Mas o que quer, afinal, essa língua? Em Lisboa, a resposta parece ser sempre esta: partir. Ainda agora, da minha janela, parou de chover, é fim de dia, o rio Tejo uma pista prateada. “It looks as if we two will never be one/Something must be done” (Louis Armstrong) Dizer batata ou tomate, baunilha ou ostra, pijama ou riso, com sotaque diferente, como na canção de Louis Armstrong, nunca impediu americanos e ingleses de se entenderem, muito menos de se lerem. Você diz trem, eu digo comboio. Mas por que não, sugere o poeta brasileiro Heitor Ferraz, criar um dicionário on-line onde se possa procurar trem e encontrar comboio, procurar comboio e encontrar trem? “Você escreve ideia, eu escrevo idéia”. E Heitor Ferraz vai continuar a escrever idéia, garante, apesar do acordo ortográfico. E se ele ainda não está publicado em Portugal, não é por escrever “idéia”, mas porque não há suficiente interesse em publicar e ler poesia (nem de um lado nem do outro do Atlântico), e deviam gastar-se recursos a tentar perceber por quê. Eu digo giro, você diz legal. Apesar do acordo ortográfico, a escritora brasileira Tatiana Salem Levy vai continuar a dizer legal. Vai continuar a colocar pronomes onde os portugueses não colo cam, vai continuar “escrevendo”, “chamando” “você”. Tatiana Salem Levy nasceu em Portugal por acaso. O seu primeiro romance, A chave de casa, nasceu primeiro em Portugal por acaso. A relação dela com Portugal, mais do que profissional, é afetiva. E por isso custa um bocadinho quando vem a Portugal e alguém lhe diz: falas brasileiro. A língua magoa E, nesse dicionário ideal, estariam cota ou mais velho e outras expressões africanas. Custa quando alguém diz: com esse sotaque africano, não podes representar Shakespeare, fazer teatro clássico. O ator Ângelo Torres aprendeu a ter sempre resposta para esse tipo de discriminação: “língua é como cor de pele. Mais até do que o nome, é a língua que nos dá uma identidade”, diz, “tirando-nos a língua, tiram-nos a identidade”, e então acontece que a língua deixa de ser pátria. Lisboa, por exemplo, está cheia de apátridas da língua. Gente que mistura crioulo cabo-verdiano com português. Negros com sotaques de branco. Brancos com sotaques africanos. Todos apátridas. A língua faz sofrer de amor.
Referência:
https://www.revistapessoa.com/artigo/1870/voce-diz-trem-eu-digo-comboio
“O que quer/o que pode esta língua?”(Caetano Veloso) Ângelo Torres, realizador, ator, contador de histórias, santomense a viver em Lisboa, atende o telefone: luso-quê?! Luso-fonia, insisto. A voz vai mudando do outro lado do telefone – escritores, cantores, Lisboa, Rio de Janeiro – mas mantém-se o tom: ninguém sabe dizer o que é, ao certo, a lusofonia, se existe, e ainda que exista, talvez não baste. É preciso discutir, discordar, estrebuchar, concordar, amar perdidamente, ficar insatisfeito, porque bom, bom, era a utopia, aquela dos tempos de descobrir o mundo. Como se o mundo não existisse antes de nós o dizermos – em português. E é como se cada falante herdasse com o código genético da língua, os versos de O quinto império, de Fernando Pessoa: “Triste de quem vive em casa,/contente com o seu lar”. Mas o que quer, afinal, essa língua? Em Lisboa, a resposta parece ser sempre esta: partir. Ainda agora, da minha janela, parou de chover, é fim de dia, o rio Tejo uma pista prateada. “It looks as if we two will never be one/Something must be done” (Louis Armstrong) Dizer batata ou tomate, baunilha ou ostra, pijama ou riso, com sotaque diferente, como na canção de Louis Armstrong, nunca impediu americanos e ingleses de se entenderem, muito menos de se lerem. Você diz trem, eu digo comboio. Mas por que não, sugere o poeta brasileiro Heitor Ferraz, criar um dicionário on-line onde se possa procurar trem e encontrar comboio, procurar comboio e encontrar trem? “Você escreve ideia, eu escrevo idéia”. E Heitor Ferraz vai continuar a escrever idéia, garante, apesar do acordo ortográfico. E se ele ainda não está publicado em Portugal, não é por escrever “idéia”, mas porque não há suficiente interesse em publicar e ler poesia (nem de um lado nem do outro do Atlântico), e deviam gastar-se recursos a tentar perceber por quê. Eu digo giro, você diz legal. Apesar do acordo ortográfico, a escritora brasileira Tatiana Salem Levy vai continuar a dizer legal. Vai continuar a colocar pronomes onde os portugueses não colo cam, vai continuar “escrevendo”, “chamando” “você”. Tatiana Salem Levy nasceu em Portugal por acaso. O seu primeiro romance, A chave de casa, nasceu primeiro em Portugal por acaso. A relação dela com Portugal, mais do que profissional, é afetiva. E por isso custa um bocadinho quando vem a Portugal e alguém lhe diz: falas brasileiro. A língua magoa E, nesse dicionário ideal, estariam cota ou mais velho e outras expressões africanas. Custa quando alguém diz: com esse sotaque africano, não podes representar Shakespeare, fazer teatro clássico. O ator Ângelo Torres aprendeu a ter sempre resposta para esse tipo de discriminação: “língua é como cor de pele. Mais até do que o nome, é a língua que nos dá uma identidade”, diz, “tirando-nos a língua, tiram-nos a identidade”, e então acontece que a língua deixa de ser pátria. Lisboa, por exemplo, está cheia de apátridas da língua. Gente que mistura crioulo cabo-verdiano com português. Negros com sotaques de branco. Brancos com sotaques africanos. Todos apátridas. A língua faz sofrer de amor.
Referência:
https://www.revistapessoa.com/artigo/1870/voce-diz-trem-eu-digo-comboio
Referência da foto:
https://www.google.com.br/search?q=a+l%C3%ADngua+portuguesa&rlz=1C1VASI_enBR514BR514&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwiLpeWUr8reAhWJjJAKHa4CAMAQ_AUIFCgC&biw=1024&bih=657#imgrc=8IH4wXKRNWBOsM: