O Amigo Deus
O Amigo Deus
Essa é manjada, mas ilustra perfeitamente. Um arremedo de explorador do Ártico se perde de seus pares no meio de uma borrasca pelas bandas da Groelândia, dizem que estava um pau de bêbado, ele cambaleia, clama por ajuda inúmeras vezes, clama inclusive pelo Incriado, de repente, do nada, surge uma mulher esquimó, que lhe dá guarida e assim salva-lhe a vida. Fato ocorrido no segundo quartel do século XX.
No natal de 1978, casado, com uma criança a caminho, indignado com o sistema e não querendo fazer parte dele, amante incondicional da aviação, o piloto Jay Prochnow topa fazer um bico um tanto bizarro para manutenção sua e da família em crescimento. Quatro mil dólares para conduzir um Cessna meia boca de São Francisco até a Austrália. Seriam 3 pulos, grosso modo, Havaí, Pago Pago, Norfolk Island, Austrália - longo e não menos arriscado voo no meio da imensidão Oceano Pacífico. Jay tirou de letra as primeiras escalas e quando deveria ter chegada na terceira só encontrou mar. Uma geringonça da aeronave, precisamente conhecida como automatic direction finder, havia pifado. Combustível, ops, sono, fome, fadiga, Jay, literalmente, não sabia onde estava. Hora de decretar emergência ao controle de tráfego aéreo de Auckland, Nova Zelândia. O pessoal da torre acha na vizinhança um McDonnell Douglas DC-10 vindo de Fiji, tendo no comando um homem chamado Gordon Vette. Nesse ponto, o que poderia ter virado tragédia assume ares de uma minuciosa arquitetura da boa vontade. Gordon era um neozelandês de 45 anos, experiente no trato aeronáutico, percebeu de imediato que a única maneira daquele aviãozinho mequetrefe e seu condutor saírem ilesos da experiência seria com ajuda, dir-se-ia cavalar, de quem podia ajudar, ou seja, ele. Gordon conversa com tripulantes e passageiros pedindo permissão para alterar o trajeto a fim de localizar o Cessna. A partir daí foi estabelecida uma comunicação com o solitário Jay Prochnow e teve início um festival de truques, de escotismo inclusive, como por exemplo, se você fechar o punho e mirá-lo na direção do sol poente, a quantidade de nós nos dedos entre o astro e a linha do horizonte remete a uma medida em graus de 0 a 180. Tentaram checar o alcance dos rádios VHF, soltaram combustível do DC-10 para criar rastros de fumaça no céu, tentaram por tempo sem conta e quando as esperanças pareciam sugadas pelas circunstâncias um dos passageiros avista o Cessna que, depois de 23 horas de voo, praticamente sem combustível, (pela cartilha, sua autonomia é de 22 horas), consegue aterrissar em segurança na Ilha Norfolk.
Jonas Salk trabalhou por anos a fio, 16 horas por dia, 8 dias por semana, buscando a vacina antipólio. Quando indagado por que não patenteara a descoberta, respondeu: "A quem pertence a minha vacina? Ao povo! Você pode patentear o sol?"
Com 28 anos de idade, passeando pela Alemanha nazista no meio da década de 30, Varian Fry se torna testemunha ocular do tratamento dispensado aos judeus no delírio dos adeptos do Führer. Retorna a América e põe a boca no trombone, cuja repercussão se faz pífia. Numa rápida analogia, se hoje, com TV, Rádio, TV a cabo, Web, Face, Instagram, Twitter, a gente mal sabe o que se passa no país fronteiriço - Venezuela, e ninguém explica como vivem os 90 por cento da população na linha da pobreza em contrapartida aos 10 por cento restantes. No ano de 1935 o mundo dava de ombros para o Carlitos austríaco, achavam-no quando muito um idiota extravagante, pois o monstro genocida ainda não havia exibido sua performance para o globo. Inexiste uma literatura que faça jus a Varian Mackey Fry, libriano de 1907, ex-aluno de Harvard, literato, jornalista e corajoso de raríssima estirpe. Em 1940, com a França ocupada, a Segunda Guerra em curso, ele se manda para Marselha, de início para ficar três semanas e acaba ficando treze meses. Vale salientar que Varian jamais teve qualquer iniciação em treinamento militar e ou relativo a espionagem. Sem respaldo algum do seu governo, então neutro durante esse período do conflito, praticamente um dândi usando uma bengala com castão, mais o discurso de que a alma da Europa, senão da civilização ocidental, estava em jogo, ele monta um aparato de amparo e uma rede clandestina de fuga, conseguindo salvar das garras da Gestapo nada menos do que cerca de 4 mil pessoas, dentre as quais: Marc Chagall, Hannah Arendt, Marcel Duchamp, Heinrich Mann, Jacques Lipchitz, Max Ernst, André Breton, Otto Meyerhoff (Prêmio Nobel de Química), Heinz Jolles (pianista), Wilfredo Lam (artista plástico), etc.
Assim como o piloto e o explorador, Varian saiu incólume dessa mega operação de resgate. Finda a guerra ele publica “Surrender on Demand”, que narra a aventura germinada nas dependências do Hotel Splendide em Marselha. Partiu do planeta em 1967 e somente em fins da década de 90 recebeu homenagem à altura, pelo Estado de Israel, com a condecoração dos “Justos entre as Nações”.
Em tempos em que o óbvio precisa ser realçado continuamente, somente amigos como esses - e outros - nos ajudam a vislumbrar um ponto futuro cuja paz entre os de boa vontade seja a única realidade pertinente.
(Imagem: "A ressurreição da filha de Jairo", de Gabriel Max, 1878)
O Amigo Deus
Essa é manjada, mas ilustra perfeitamente. Um arremedo de explorador do Ártico se perde de seus pares no meio de uma borrasca pelas bandas da Groelândia, dizem que estava um pau de bêbado, ele cambaleia, clama por ajuda inúmeras vezes, clama inclusive pelo Incriado, de repente, do nada, surge uma mulher esquimó, que lhe dá guarida e assim salva-lhe a vida. Fato ocorrido no segundo quartel do século XX.
No natal de 1978, casado, com uma criança a caminho, indignado com o sistema e não querendo fazer parte dele, amante incondicional da aviação, o piloto Jay Prochnow topa fazer um bico um tanto bizarro para manutenção sua e da família em crescimento. Quatro mil dólares para conduzir um Cessna meia boca de São Francisco até a Austrália. Seriam 3 pulos, grosso modo, Havaí, Pago Pago, Norfolk Island, Austrália - longo e não menos arriscado voo no meio da imensidão Oceano Pacífico. Jay tirou de letra as primeiras escalas e quando deveria ter chegada na terceira só encontrou mar. Uma geringonça da aeronave, precisamente conhecida como automatic direction finder, havia pifado. Combustível, ops, sono, fome, fadiga, Jay, literalmente, não sabia onde estava. Hora de decretar emergência ao controle de tráfego aéreo de Auckland, Nova Zelândia. O pessoal da torre acha na vizinhança um McDonnell Douglas DC-10 vindo de Fiji, tendo no comando um homem chamado Gordon Vette. Nesse ponto, o que poderia ter virado tragédia assume ares de uma minuciosa arquitetura da boa vontade. Gordon era um neozelandês de 45 anos, experiente no trato aeronáutico, percebeu de imediato que a única maneira daquele aviãozinho mequetrefe e seu condutor saírem ilesos da experiência seria com ajuda, dir-se-ia cavalar, de quem podia ajudar, ou seja, ele. Gordon conversa com tripulantes e passageiros pedindo permissão para alterar o trajeto a fim de localizar o Cessna. A partir daí foi estabelecida uma comunicação com o solitário Jay Prochnow e teve início um festival de truques, de escotismo inclusive, como por exemplo, se você fechar o punho e mirá-lo na direção do sol poente, a quantidade de nós nos dedos entre o astro e a linha do horizonte remete a uma medida em graus de 0 a 180. Tentaram checar o alcance dos rádios VHF, soltaram combustível do DC-10 para criar rastros de fumaça no céu, tentaram por tempo sem conta e quando as esperanças pareciam sugadas pelas circunstâncias um dos passageiros avista o Cessna que, depois de 23 horas de voo, praticamente sem combustível, (pela cartilha, sua autonomia é de 22 horas), consegue aterrissar em segurança na Ilha Norfolk.
Jonas Salk trabalhou por anos a fio, 16 horas por dia, 8 dias por semana, buscando a vacina antipólio. Quando indagado por que não patenteara a descoberta, respondeu: "A quem pertence a minha vacina? Ao povo! Você pode patentear o sol?"
Com 28 anos de idade, passeando pela Alemanha nazista no meio da década de 30, Varian Fry se torna testemunha ocular do tratamento dispensado aos judeus no delírio dos adeptos do Führer. Retorna a América e põe a boca no trombone, cuja repercussão se faz pífia. Numa rápida analogia, se hoje, com TV, Rádio, TV a cabo, Web, Face, Instagram, Twitter, a gente mal sabe o que se passa no país fronteiriço - Venezuela, e ninguém explica como vivem os 90 por cento da população na linha da pobreza em contrapartida aos 10 por cento restantes. No ano de 1935 o mundo dava de ombros para o Carlitos austríaco, achavam-no quando muito um idiota extravagante, pois o monstro genocida ainda não havia exibido sua performance para o globo. Inexiste uma literatura que faça jus a Varian Mackey Fry, libriano de 1907, ex-aluno de Harvard, literato, jornalista e corajoso de raríssima estirpe. Em 1940, com a França ocupada, a Segunda Guerra em curso, ele se manda para Marselha, de início para ficar três semanas e acaba ficando treze meses. Vale salientar que Varian jamais teve qualquer iniciação em treinamento militar e ou relativo a espionagem. Sem respaldo algum do seu governo, então neutro durante esse período do conflito, praticamente um dândi usando uma bengala com castão, mais o discurso de que a alma da Europa, senão da civilização ocidental, estava em jogo, ele monta um aparato de amparo e uma rede clandestina de fuga, conseguindo salvar das garras da Gestapo nada menos do que cerca de 4 mil pessoas, dentre as quais: Marc Chagall, Hannah Arendt, Marcel Duchamp, Heinrich Mann, Jacques Lipchitz, Max Ernst, André Breton, Otto Meyerhoff (Prêmio Nobel de Química), Heinz Jolles (pianista), Wilfredo Lam (artista plástico), etc.
Assim como o piloto e o explorador, Varian saiu incólume dessa mega operação de resgate. Finda a guerra ele publica “Surrender on Demand”, que narra a aventura germinada nas dependências do Hotel Splendide em Marselha. Partiu do planeta em 1967 e somente em fins da década de 90 recebeu homenagem à altura, pelo Estado de Israel, com a condecoração dos “Justos entre as Nações”.
Em tempos em que o óbvio precisa ser realçado continuamente, somente amigos como esses - e outros - nos ajudam a vislumbrar um ponto futuro cuja paz entre os de boa vontade seja a única realidade pertinente.
(Imagem: "A ressurreição da filha de Jairo", de Gabriel Max, 1878)