O casamento

Descontraídas, as letrinhas brincavam no parque do abecedário. Elas iam e vinham, numa algazarra enorme, fazendo figuras e sombras, arranjos e combinações. Tinha letras de todas as cores, azuis, vermelhas, verdes, alaranjadas, cinzentas e brancas. Nesse brinquedo, via-se as maiúsculas puxando as menores, as góticas esnobando as cursivas, enquanto as simpáticas vogais olhavam para as consoantes, numerosas mas desorganizadas, com certa pena. E lá se iam todas as letras, caminhando para não sei onde, sem um objetivo, arredias a qualquer construção lógica. Foi quando alguém perguntou: “Afinal, quem somos nós? Para que servimos? De que nos adianta termos sons se não os podemos organizar?”. As outras assentiram, meneando suas cabecinhas vazias, preocupadas com a inutilidade de suas vidas. Uma delas sugeriu: “E se a gente mandasse buscar um mágico, um técnico ou alguém especialista em montagens?”. Enquanto algumas consentiram, outras tiveram idéia diferente: “Quem sabe a gente mandava buscar um padre ou um ministro, para casar as mais afins?”. Entre debates e votações, ficou decidido que chamariam alguém que resolvesse tão angustiante problema, e que desse a solução, de uma vez por todas, acabando com a enorme solidão que elas sentiam. E veio o especialista. Ele começou, primeiramente observando. Depois fez a pesquisa. Para o trabalho, trouxe consigo uma mala cheia. Curiosas, as letrinhas azuis foram ver o que tinha dentro. Lá encontraram pastas, envelopes e pacotes, onde se lia: inspiração, técnica, criatividade, coragem, disciplina, conhecimento. E se perguntaram intimamente: “Será que só isso vai nos trazer a felicidade?”. O artista começou a trabalhar. Dispôs as letras em formação, como num desfile militar, e foi juntando seus sons, suas cores, formando idéias, conceitos, juízos. Teimosas e apressadas, algumas queriam, por si, formar conjuntos. O “R” se colocou à frente, chamando o “O”, o “M” e o “A”. “Pronto, disse eufórico, escrevi Roma, a capital do mundo!”. O técnico sorriu, e inverteu a ordem: ficou AMOR; e disse: “apesar de todas aquelas ferramentas que vocês viram em minha pasta, jamais conseguirão criar algo de bom se não acrescentarem o amor”. As pequenas letras adoraram o casamento, começaram a se multiplicar na magia do amor, adquiriram vida e forma, sob a orientação do chefe. Surgiram contos, crônicas, ensaios, romances... Por fim, uma delas perguntou: “Mestre, como é seu nome?”. Solicitamente ele respondeu: “Uns me chamam de amigo, outros de ministro de união; alguns dizem que eu sou um técnico, muitos acham que sou feitceiro porque faço mágicas... Eu prefiro que me chamem pelo nome: Eu sou o escritor”

(Crônica premiada)

Antônio Mesquita Galvão
Enviado por Antônio Mesquita Galvão em 27/10/2005
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