A "gata" e o "ricardão"

Há palavras que falam por si, como Gata e Ricardão. Já viram que vou falar nas relações extraconjugais. Existe diferença entre o tratamento que o homem dispensa à esposa e aquele dispensado à outra.

A primeira é tristemente chamada inominalmente de “a mulher”, quando não a “jararaca” ou algo mais cruel até, e a outra é sempre brindada com diminutivos carinhosos, como gatinha ou totózinho, tendidos à fantasia que cerca a relação. Para a esposa ele remete flores uma vez por ano, no dia das mães, a pedido dos filhos; para a gatona, ele tem conta no florista.

No Natal ou no aniversário, ele manda a mulher escolher alguma coisa, que depois ele paga; a gata não. O presentinho é cercado de suspense, vem em vistosa embalagem, com um cartão meloso e em geral acompanhado de jantar e balada. À esposa sobra, quando ele tem tempo, um lanche num trailer de cachorro quente. A esposa ganha (quando ganha) um carro usado; o da gata é sempre do ano. Isto não é exagero. Algumas esposas (graças a Deus não é regra geral) fazem templo na cozinha ou até na lavanderia; a outra, faz tudo girar em torno do quarto, onde a cama, é o altar da celebração do furtivo.

A esposa arruma a casa e ai de quem desarrumá-la; a amante arruma o “cafofo” para ele desarrumar, pôr cinzas no chão, colocar os pés em cima da mesinha da sala, virar copos no tapete... No aniversário a esposa dá presentes de utilidade; a outra, coisas inúteis, porém sofisticadas. Quando a casada se arruma, se pinta e faz o cabelo, ninguém pode chegar perto; na casa da outra é diferente: o cara chega e ela vai logo dizendo: “fiz um cabelo bonito só prá você despentear...”.

A esposa não gosta de ser beijada por causa do batom; a outra adora um lambuzo. O cara chega e é bombardeado por problemas e sobressaltos domésticos. A gata nem fala, só rosna; fala da saudade e daquela música que ouviu e pensou nele... Na hora da briga, a esposa grita e gesticula como um guarda romano; a outra chora; uma usa o dedo em riste para fortalecer o argumento; a outra faz beicinho; uma espera o marido vestida com as piores roupas, rosto melecado de cosméticos e rolinhos no cabelo; a outra coloca o vestido mais provocante, ou apenas vestida perfume...

Em meio a essas diferenças gritantes, os maridos levam as esposas anualmente a um baile do clube ou da paróquia, enquanto a gatinha é vista, quase que semanalmente, com o “de cujus” em lugares top... A esposa economiza para ele gastar com a gata... Quem teve a paciência de ler até aqui deve estar imaginando que eu quero fazer apologia da sacanagem. Não é nada disto! Tudo são coisas constatadas no dia-a-dia, e que, vistas com certa perspicácia, poderiam interessar a meus leitores e até serem debatidas em “cursos de noivos”.

Para a alegria das feministas, vou mudar de gênero. Enquanto o marido é grosso, o Ricardão (que é o correspondente da gata) é romântico; o marido é pragmático, o outro é sonhador. O marido ordena, o outro sugere, ou no máximo pede. Assim, se poderia dizer que o marido fala a linguagem dos negócios, e o outro o idioma dos gestos; um se diz dono, o outro quer ser propriedade; um exige “cumprimento dos deveres”, o outro quer mais dar que receber; um toma, o outro ganha. Se o marido telefona, ela fuzila: “O que é? Tá me cuidando?” Se o outro liga, ela retira o brinco e atende: “Alôôô amorooor? Pensei que tinha me esquecido! Só me ligou quatro vezes hoje!”

Os defeitos do Ricardão são charme e denotam personalidade; a virtude do marido é coisa ultrapassada. Se ele tenta algo mais ousado, ela pergunta: “Ué, onde que tu aprendeu isto?” Se o Ricardão vai além, ela o considera um amante ideal. E assim também é o marido que, segundo algumas “doutoras em cama” é mineiro conservador em casa, e francês ousado na rua.

Toda esta conversa levanta questões para refletir. Para que algumas pessoas, quem sabe, se identifiquem com alguns personagens aqui enfocados que não foram tirados de uma história de Nelson Rodrigues, mas figurantes de muitos dramas do cotidiano. E quando alguém persiste num tipo de postura, certamente merece toda a “dor de cabeça” que tem.

– crônica premiada –

(Publicada pela primeira vez em 29/08/1991, no Diário Popular, de Pelotas)

Antônio Mesquita Galvão
Enviado por Antônio Mesquita Galvão em 26/10/2005
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