Um cego chamado Luz

Fazia uns quatro anos que eu não o encontrava. Aliás, foi ele que me “viu”. Naquela manhã eu estava todo atrapalhado. Ia a um determinado lugar, no quinto andar de um prédio, para ver as provas da capa de um novo livro. Entrei no elevador lotado, dei um “bom dia” geral e pedi à ascensorista o número do andar desejado. Alguém pegou no meu braço. Antes de me virar, pensei, se é ladrão vai levar uma porrada, daquelas. Meus pensamentos malévolos ainda não haviam chegado ao fim, quando ele perguntou: “Antônio?”.

Virando-me, no elevador lotado, antes de divisar o interlocutor, disse: “Sim!”. Dei de cara com ele. Mais magro, com o mesmo sorriso, óculos escuros e a tradicional bengala que identifica as pessoas cegas, aquelas que, apesar de haverem perdido a visão, teimam em levar uma vida normal, ensinando a muita gente o real valor das coisas da vida. Com a efusão característica de sua personalidade alegre, ele me abraçou. Numa torrente de palavras deu notícias da mulher, do filho, do trabalho, e perguntou pela Carmen, Ana, Ricardo e se eu ainda escrevia livros.

Confesso que foi uma surpresa agradável. Até perdi a hora marcada do encontro com os diagramadores da gráfica. Azar! Fodam-se! Já que eles haviam errado, que esperassem mais um dia... O reencontro com um amigo tão especial, compensa a perda de um compromisso que pode ser finalizado mais tarde. E eu não ia deixar passar aquela oportunidade de aprender tanta coisa com aquela notável sabedoria...

O rapaz, na verdade, não nasceu cego. Tinha problemas, sérios e hereditários, de diabetes. Teimoso, como todo o diabético, achou que as coisas ruins só acontecem com outros. E o raio caiu na cabeça dele. Um dia, depois de uma incrível ambrosia noturna, amanheceu cego. E de lá para cá, não houve tratamento que desse jeito. Assim mesmo, falou-me de alegria, contou seus planos para o futuro, narrou peripécias do filho na escola, deu notícias de Marley, sua mulher. Foram momentos gostosos. Acabei não lembrando que o pessoal da computação gráfica havia errado umas quatro vezes as cores da capa do livro, e esqueci de apanhar as fotos da última viagem e de comprar umas alcaparras que Carmen havia solicitado. Convidei-o para almoçarmos juntos.

Ele declinou, alegando estar em dieta. Com calma contou-me seus planos. Estava fechando o negócio com um sítio, nos arredores de Porto Alegre. “Não imaginas - disse - a beleza que é o amanhecer por lá...a grama verdinha, molhada pelo sereno, com aquele cheiro de paraíso... Os pássaros são como uma orquestra em concerto...vêm pousar bem perto de nós...”.

E eu fiquei pensando. “Esse aí, mesmo sem a visão, é capaz de sentir a cor e o perfume da natureza... quanta gente por aí, cheia de olhos na cara, e só sabe ver negócios, dinheiro, futilidades, inimizades”. Olhei para ele, um homem ainda jovem, vestido com simplicidade, diferente de tantos que ostentam falsa riqueza pelas páginas do jornais, mostrando sorrisos que revelam um esgar de ansiedade, devendo até as calças, falidos e sem a paz que o cego revelava. Lembrei do pedido do cego a Jesus: “Senhor, faz com que eu veja!”. Muitos de nós, mesmo com a vista em condições, precisam fazer constantemente esse pedido.

Quando nos despedimos, perguntei-lhe: “Afinal, como é que me reconheceste no elevador?”. Sorrindo, ele respondeu: “Ah! coisas de cego! Primeiro identifiquei tua voz; é inconfundível; depois reconheci o “Stiletto” que usas...”.

Saí dali com a alma sorrindo e o coração lavado de alegria, refletindo sobre quantas pessoas com olhos bons não enxergam nada, e admirado pela percepção de meu amigo, cujo sobrenome, por mais curioso que possa parecer, é Luz. Pudera! Quem é iluminado, como ele, pode prescindir da visão sensível.

Antônio Mesquita Galvão
Enviado por Antônio Mesquita Galvão em 25/10/2005
Código do texto: T63420