Anteviram, mas não viram
Quando a plateia de cerca de 30 pessoas presentes na sala 2 do cine Guion Center, no Centro Comercial Nova Olaria, em Porto Alegre, aplaudiu O Jovem Karl Marx ao final da exibição, eu pensei: ainda tem representatividade a obra desse autor, mesmo 170 anos depois da publicação do Manifesto Comunista, tema do filme. Em termos de pensamento econômico, político e filosófico, é um feito.
Era a sessão das 18h50min do dia 1º de fevereiro. O Manifesto foi publicado, variam as informações, entre o final de fevereiro e o início de março de 1848. O Manifesto é pequeno, tem umas 30 páginas, dependendo da edição, e, como o nome diz, é um panfleto de um partido político, não um livro. Todavia, sua influência na história da humanidade foi grande, principalmente na segunda metade do século XIX, quando a concepção de economia e de história que o embasa era nova e avançada, tanto em relação às ciências humanas em geral quanto, principalmente, na seara do pensamento socialista.
Aliás, o manifesto chamou-se “comunista” porque os autores não gostavam da conotação que o termo “socialista” possuía no período, que era algo, digamos, na linguagem atual, próximo ao “pelego”. Na terceira parte do Manifesto, a que mais caducou desde então (junto com as propostas comunistas ao final da seção II e toda a seção IV), eles se referem tanto a teoria socialista “burguesa” quanto a “utópica” como insuficientes para a libertação do proletariado (trabalhadores assalariados) no modo de produção capitalista. O comunismo se propunha ser um socialismo de caráter científico, ao contrário dos outros.
Os princípios do materialismo histórico-dialético, método de análise científica do social elaborada por Karl Marx e Friedrich Engels, pensadores nascidos na Alemanha, então com 29 e 27 anos, respectivamente, permeiam toda a visão expressa no Manifesto. No prefácio à edição inglesa de 1888, Engels afirma: “Pouco a pouco, vários anos antes de 1845, fomos elaborando essa ideia que, em minha opinião, será para a História o que foi para a Biologia a teoria de Darwin”. Confiavam no seu taco teórico, os alemães.
No mesmo prefácio, Engels também esclarece: “A prosição fundamental pertence a Marx. Essa proposição é a de que, em cada época histórica, a produção econômica, o sistema de trocas e a estrutura social que dela nescessariamente decorre, constituem a base e a explicação da história política e intelectual dessa época; que consequentemente (desde a dissolução do regime primitivo da propriedade comum da terra) toda a história da humanidade tem sido a história da luta de classes, conflitos entre explorados e exploradores, entre as classses dominadas e dominantes”. Em síntese, é isso aí.
Alguns trechos do manifesto se tornaram clássicos da literatura política ocidental: “Um espectro ronda a Europa – o espectro do comunismo. Todas as potências da velha Europa unem-se numa Santa Aliança para conjurá-lo”. De fato, tanto os autores como os demais integrantes da Liga Comunista (basicamente formada por artesãos e operários fabrís) foram perseguidos pelos governos europeus, sendo presos ou exilados. No momento em que o Manifesto foi publicado, várias revoltas proletárias eclodiram no continente. Não inspiradas pelo Manifesto, mas este era um dos suportes teóricos para uma situação política e social em curso.
Outro trecho clássico é o encerramento: “Os proletários nada tem a perder, a não ser seus grilhões. Tem um mundo a ganhar. Proletários de todo o mundo, uní-vos”. De fato o internacionalismo proletário, conforme acentua o filósofo Michael Lowy, era um dos pontos centrais do panfleto.
De 2008 para cá, com a crise que se instalou no ocidente, a obra de Marx passou a novamente gerar interesse, pois uma coisa que ele fez foi analisar profundamente o capitalismo e teorizar sobre suas crises cíclicas, principalmente em obras como O Capital (1867). Não acertou no prognóstico de que o capitalismo sucumbiria e, em seu lugar, viria uma sociedade comunista. No século XX esse embate ocorreu e experiências importantes como a do regime soviético na Rússia desabaram.
Todavia, o Estado do bem-estar social, que se traduz nos mais elevados índices de IDH da ONU observados nos países nórdicos europeus, é fruto do confronto dos projetos inspirados pelo socialismo marxista com o capitalismo, atenuando os efeitos do segundo sobre a classe operária e resultando em modelos de governo como o citado e, aqui no Brasil, em pensamentos políticos e formas de governar como o trabalhismo getulista. Marx e Engels, contudo, não viveram para ver tudo isso, mas anteviram o movimento, de certa forma.
Com a crise recente no Brasil ocorre o mesmo: as reformas promovidas pelo governo Temer ressuscitam o conceito de luta de classes, presente no Manifesto, como instrumento de análise política e econômica. Claro, isso com as paixões e ódios de sempre, gerando acaloradas polêmicas.
Os adjetivos “comunista” e “fascista” utilizados à rodo nas redes sociais o atestam. Se o Manifesto Comunista (e textos como Minha Luta, de Hitler) fosse lido, talvez as pessoas não utilizassem tão livremente assim esses conceitos, que perdem sua essência no senso comum, quando dirigidos a personagens atuais da política brasileira. Isso, com certeza, nem Marx e tampouco Engels anteviram, há 170 anos.
Texto publicado no site do jornal Portal de Notícias em 02.03/2018: http://www.portaldenoticias.com.br/ler-coluna/492/anteviram-mas-nao-viram.html
Quando a plateia de cerca de 30 pessoas presentes na sala 2 do cine Guion Center, no Centro Comercial Nova Olaria, em Porto Alegre, aplaudiu O Jovem Karl Marx ao final da exibição, eu pensei: ainda tem representatividade a obra desse autor, mesmo 170 anos depois da publicação do Manifesto Comunista, tema do filme. Em termos de pensamento econômico, político e filosófico, é um feito.
Era a sessão das 18h50min do dia 1º de fevereiro. O Manifesto foi publicado, variam as informações, entre o final de fevereiro e o início de março de 1848. O Manifesto é pequeno, tem umas 30 páginas, dependendo da edição, e, como o nome diz, é um panfleto de um partido político, não um livro. Todavia, sua influência na história da humanidade foi grande, principalmente na segunda metade do século XIX, quando a concepção de economia e de história que o embasa era nova e avançada, tanto em relação às ciências humanas em geral quanto, principalmente, na seara do pensamento socialista.
Aliás, o manifesto chamou-se “comunista” porque os autores não gostavam da conotação que o termo “socialista” possuía no período, que era algo, digamos, na linguagem atual, próximo ao “pelego”. Na terceira parte do Manifesto, a que mais caducou desde então (junto com as propostas comunistas ao final da seção II e toda a seção IV), eles se referem tanto a teoria socialista “burguesa” quanto a “utópica” como insuficientes para a libertação do proletariado (trabalhadores assalariados) no modo de produção capitalista. O comunismo se propunha ser um socialismo de caráter científico, ao contrário dos outros.
Os princípios do materialismo histórico-dialético, método de análise científica do social elaborada por Karl Marx e Friedrich Engels, pensadores nascidos na Alemanha, então com 29 e 27 anos, respectivamente, permeiam toda a visão expressa no Manifesto. No prefácio à edição inglesa de 1888, Engels afirma: “Pouco a pouco, vários anos antes de 1845, fomos elaborando essa ideia que, em minha opinião, será para a História o que foi para a Biologia a teoria de Darwin”. Confiavam no seu taco teórico, os alemães.
No mesmo prefácio, Engels também esclarece: “A prosição fundamental pertence a Marx. Essa proposição é a de que, em cada época histórica, a produção econômica, o sistema de trocas e a estrutura social que dela nescessariamente decorre, constituem a base e a explicação da história política e intelectual dessa época; que consequentemente (desde a dissolução do regime primitivo da propriedade comum da terra) toda a história da humanidade tem sido a história da luta de classes, conflitos entre explorados e exploradores, entre as classses dominadas e dominantes”. Em síntese, é isso aí.
Alguns trechos do manifesto se tornaram clássicos da literatura política ocidental: “Um espectro ronda a Europa – o espectro do comunismo. Todas as potências da velha Europa unem-se numa Santa Aliança para conjurá-lo”. De fato, tanto os autores como os demais integrantes da Liga Comunista (basicamente formada por artesãos e operários fabrís) foram perseguidos pelos governos europeus, sendo presos ou exilados. No momento em que o Manifesto foi publicado, várias revoltas proletárias eclodiram no continente. Não inspiradas pelo Manifesto, mas este era um dos suportes teóricos para uma situação política e social em curso.
Outro trecho clássico é o encerramento: “Os proletários nada tem a perder, a não ser seus grilhões. Tem um mundo a ganhar. Proletários de todo o mundo, uní-vos”. De fato o internacionalismo proletário, conforme acentua o filósofo Michael Lowy, era um dos pontos centrais do panfleto.
De 2008 para cá, com a crise que se instalou no ocidente, a obra de Marx passou a novamente gerar interesse, pois uma coisa que ele fez foi analisar profundamente o capitalismo e teorizar sobre suas crises cíclicas, principalmente em obras como O Capital (1867). Não acertou no prognóstico de que o capitalismo sucumbiria e, em seu lugar, viria uma sociedade comunista. No século XX esse embate ocorreu e experiências importantes como a do regime soviético na Rússia desabaram.
Todavia, o Estado do bem-estar social, que se traduz nos mais elevados índices de IDH da ONU observados nos países nórdicos europeus, é fruto do confronto dos projetos inspirados pelo socialismo marxista com o capitalismo, atenuando os efeitos do segundo sobre a classe operária e resultando em modelos de governo como o citado e, aqui no Brasil, em pensamentos políticos e formas de governar como o trabalhismo getulista. Marx e Engels, contudo, não viveram para ver tudo isso, mas anteviram o movimento, de certa forma.
Com a crise recente no Brasil ocorre o mesmo: as reformas promovidas pelo governo Temer ressuscitam o conceito de luta de classes, presente no Manifesto, como instrumento de análise política e econômica. Claro, isso com as paixões e ódios de sempre, gerando acaloradas polêmicas.
Os adjetivos “comunista” e “fascista” utilizados à rodo nas redes sociais o atestam. Se o Manifesto Comunista (e textos como Minha Luta, de Hitler) fosse lido, talvez as pessoas não utilizassem tão livremente assim esses conceitos, que perdem sua essência no senso comum, quando dirigidos a personagens atuais da política brasileira. Isso, com certeza, nem Marx e tampouco Engels anteviram, há 170 anos.
Texto publicado no site do jornal Portal de Notícias em 02.03/2018: http://www.portaldenoticias.com.br/ler-coluna/492/anteviram-mas-nao-viram.html