Sua Majestade, a bodega
Na década de 1960, quando comecei a me entender por gente, precisamente de 1962 a 1967 (10 aos 15 anos), tive meus primeiros contatos e aprendizados com as bodegas de Barbalha, Aurora, Juazeiro do Norte.
As bodegas tinham um papel importantíssimo na vida social e econômica nas cidades e vilas do Ceará.
Em Juazeiro do Norte, cidade mais desenvolvida do interior cearense, para onde meu pai, militar, foi transferido em 1962, em quase toda esquina imperava uma majestosa bodega, em cujo balcão e nas pratileiras empoeiradas ficavam à mostra as mercadorias sortidas: charque, farinha, feijão, sabão em barras, querosene, condimento, fubá, rapadura, cigarros, queijo, fumo de rolo, litros e mais litros de cachaça, além de uma surrada balança Filizola de pesagem não muito confiável.
A qualquer momento, eu, menino arteiro, era mandado por dona Quininha à bodega do seu Joaquim, que ficava na rua da Glória, esquina com a rua Alencar Peixoto, para comprar fiado alguns mantimentos, tais como: colorau, açucar, bolacha, sal, ovos e, como nao podia faltar, o fumo de rolo para o cigarro brabo do meu velho Expedito. O óleo de cozinha Patury era o produto mais vendido no rateio: comprar uma lata fechada representava um luxo para poucos, por isso usava-se um copo como medida e com um funil se inseria o óleo numa garrafa apropriada para o transporte. Toda compra era anotada numa caderneta de fiados, dívida que até hoje tenho dúvidas se foi 100% solvida.
Os contumazes cachaceiros eram figuras carimbadas e inseparáveis da bodega, ficavam o dia todo de plantão à espera de uma dose da santa bebida, assim alimentavam o vício e em troca faziam pequenos favores ao bodegueiro Joaquim, como varrer a calçada e levar recados. Eram pinguços falastrões, mas respeitosos com os fregueses casuais.
Na bodega do Seu Joaquim também existia o fator comunicação, era dentro dela que se discutia carestia, religião, política, cangaço, cabarés, raparigas, corrupção, reputação, nela se anunciavam nascimentos, mortes, casamentos, separações, prisões, se falava da vida alheia, quem era corno, quem parecia ser, quem estava pra ser, quem não era mais moça, contavam-se histórias de Trancoso, mentiras improvisadas, entre um gole e outro de cachaça, acompanhadas de um tira gosto de siriguela. As reuniões na bodega era um hábito tradicional, era o ponto de encontro dos aposentados, desempregados e meninos curiosos, sempre vistos com maus olhos pelo bodegueiro - afinal, todos eram incorrigíveis arteiros: Levi, Gutemberg, Francinaldo, Anselmo, Damião, Zé Molhado, Gilson, Deda, Rômulo, muitos deles exímios surrupiadores de pirulitos, cocadas e filhós.
Em toda bodega de "responsa" havia um gato capado, obeso e dorminhoco em cima do balcão, e na bodega do Seu Joaquim não era diferente: o gato Bolinha, bem familiarizado com as catitas, era figura decorativa, indispensável, sobre o balcão sebento e vivia acarinhado, bajulado, pelos bebuns de plantão.
Foi o lugar mais livre e democrático que conheci. Sem deixar de citar a milagrosa garrafada preparada com jatobá, boldo, manjericão, arruda, gengibre, pega- pinto, batata-de-teiu, mastruz, catuaba, tudo triturado, amassado e curtido com cachaça de alambique de Barbalha numa bendita garrafa pronta para o consumo. Seu Joaquim garantia que a famosa garrafada curava gripe, tosse braba, dor de veado, diarreia, gonorreia, piorreia, tuberculose, cobreiro, espinhela caida, impotência sexual e hemorroidas.
Não se trata de saudosismo, pois seria uma ingratidão deslembrar a figura do bodegueiro. Como poderia esquecer as bodegas da minha infância? Hoje infelizmente desaperecidas, foram engolidas pelos mercados de grande porte.
Autor: Benedito Morais de Carvalho (Benê)