Bê-á-bá da escola pública
De casa à sala de aula, todos os desafios enfrentados pelo ensino público
Robinho domina a bola e passa para Gustavo. Henrique, jogador do time adversário, não poupa a marcação. A jogada fica difícil, até que Wesley aparece para garantir o gol. As partidas de futebol entre os garotos do bairro Jardim do Sol, em Engenheiro Coelho, acontecem todos os dias, depois da aula. Damião tem 14 anos, mora no bairro há dois e adora jogar futebol. No entanto, não pode brincar com os amigos. Durante as partidas, ele precisa trabalhar em um mercado próximo de sua casa para ajudar no sustento dos sete irmãos. Damião pode até ficar sem as partidas de futebol, mas não admite ficar sem ir à escola.
Em sala de aula, ele aprende a ler, escrever e sonhar. O garoto confessa que pretende dar aulas. “Vou ser professor de todas as matérias, pois eu quero ensinar tudo para todas as pessoas”. Damião estuda na escola municipal Elisa Franco, em Engenheiro Coelho. Ali, cerca de 400 crianças de pré-escola a 4ª série estudam em dois períodos diferentes. As paredes e o forro das salas necessitam de reparo, os vidros de concerto e o chão de água e sabão. Mas Josi Rosa, professora há 5 anos na cidade, acredita que a escola pública precisa muito mais do que uma reforma física. Para ela, a educação necessita de uma mudança cultural. “Precisamos de alunos que tenham mais vontade de aprender”, enfatiza.
Apesar de aos 14 anos ainda cursar a 3ª série, Damião nunca reprovou. Pelo contrário, é o melhor aluno da classe. Há dois anos, sua família saiu do interior da Paraíba para tentar a vida em São Paulo. O local onde morava não havia emprego nem escola. Segundo a mãe de Damião, Maria Fernandes Leite, a mudança foi uma maneira de melhorar a situação da família. “Lá na Paraíba a vida era muito difícil. Meus filhos mais velhos não tiveram a oportunidade de estudar e hoje estão aí, cortando cana. Vim para São Paulo na esperança de que as coisas mudem”, confessa. Maria ainda conta que não quer dinheiro. Ela afirma que apenas quer ter felicidade e dignidade.
Damião tinha tudo para ser um cortador de cana-de-açúcar, com seis filhos e uma esposa para cuidar. Nada mais do que o reflexo de seus pais. Mas Damião não quer terminar seus dias em baixo de um pé de laranja, ou com o cabo do facão na mão. “O que vai me deixar mais feliz em toda minha vida”, conta o garoto, imaginando o dia em que realizará seu sonho, “vai ser dar uma casa para os meus pais. Ou qualquer coisa que faça a vida deles melhor”.
Para isso, ele precisa enfrentar o preconceito dos colegas. A idade de Damião corresponde a de um aluno de 8ª série, um fato que se torna motivo de brincadeira e chacotas. Não é fácil para o garoto. Também não é fácil para a escola e professores. No entanto, Damião prefere esquecer os comentários para se dedicar exclusivamente aos estudos. Ele dá apenas um conselho: “As pessoas deveriam mudar. O preconceito só faz mal”.
Um, dois, três, muitos...
Assim como Damião, centenas de outras crianças enfrentam inúmeras dificuldades na hora de estudar. É o caso de Josiane. Ela tem 10 anos de idade e cursa a 3ª série. Tímida, a garota senta sozinha em um canto da sala. As poucas palavras que consegue falar em aula são alguns resmungos de insatisfação com seu próprio caderno de estudos. “Não gosto de minha letra. Ela é muito feia. Não dá tempo de escrever uma letra bonita, pois preciso copiar tudo muito rápido para não perder nenhuma explicação da professora”, admite.
Josiane mora fora da cidade, em um pequeno sítio, com os avós. Seus pais morreram, porém, ela não sabe como. Todos os dias, a garota precisa acordar muito cedo para não perder o ônibus que a leva até a escola. Para ela, estudar também é um desafio. Não apenas pelo fato de morar longe da escola, mas pela dificuldade de carinho e auto-aceitação. Segundo sua professora, Josiane sofre sérios problemas de auto-estima. Assim como William, 10 anos, que faz terapia uma vez por semana. O caso de William é grave. Ele pode ser agressivo, primeiro para si mesmo e depois para as outras pessoas. A família, entretanto, é muito carente e não dispõe recursos para um tratamento especializado.
Mas os professores e escola ainda enfrentam muitos desafios. Só na sala de Damião, há crianças com déficit de atenção, hiperatividade, indisciplina, transtorno alimentar, distúrbio sexual e muitos outros casos. Diante disso, o professor assume a responsabilidade de pai, psicólogo, psicopedagogo e, às vezes, até médico. Maria Sônia Petrolina leciona há 10 anos na escola pública. Ela revela que as dificuldades da educação brasileira não se limitam a falta de giz, apagador, livro, papel ou qualquer outro material didático-pedagógico. De acordo com a professora, a escola pública precisa de participação social ativa. “Os pais não podem mais pensar que responsabilidade familiar é somente fazer a matrícula escolar dos filhos. É preciso compreender o real sentido da palavra responsabilidade, comprometimento e família”, opina.
Dinheiro na escola
A mãe nunca foi na escola. O pai não aparece mais em casa. O irmão mais velho só sai com os amigos. E o caçula ainda não fala. A falta de estrutura familiar não oferece suporte para o êxito educacional. “As crianças perderam seus referenciais”, explica a vice-diretora da Escola Antônio Cavaleiro, em Engenheiro Coelho, Rosangela Fadel. A professora expõe que o problema não é a pobreza, mas sim, a ausência.
Já Selma Fonseca, coordenadora pedagógica do colégio Unasp, uma das unidades de ensino da rede particular de educação adventista no Brasil, ressalta que não existe ensino sem dinheiro. Segundo ela, uma coisa envolve a outra. “Pode haver educação, mas ensino não”. Um professor pode fazer educação até embaixo de uma árvore, mas não pode efetivamente ensinar sem o apoio didático.
Há diferenças nítidas entre o ensino público e particular. À começar pela estrutura física que dispõem as escolas privadas, o corpo docente e, é claro, o dinheiro. No entanto, a escola particular não é prefeita. A partir do momento que o princípio mercadológico de que pai e alunos são clientes se inseriu na educação, a escola particular perdeu autonomia e respeito. A professora de escola pública Dulcelena Vilela identifica na escola privada a presença de acepção social. Para ela, na hora da avaliação discente, o dinheiro e a posição social do aluno sempre estão envolvidos. “Aqui na escola pública, as coisas não funcionam assim. Aprovação depende de esforços”, garante.
Ainda se tem uma visão extremamente romântica de que na escola privada os pais são participativos, os alunos interessados, os professores preparados e o ambiente privilegiado. Não é bem assim. Nas escolas particulares os pais também não vão as reuniões escolares, os alunos são rebeldes, os professores aprendem a lidar com novas situações todos os dias e, às vezes, aparece uma pia ou bebedouro estragados. “As escolas públicas e particulares enfrentam quase os mesmos desafios. A maior diferença entre elas é a autonomia acadêmica e o nível social”, apresenta a professora Selma.
Eles, os alunos
Damião nem imagina a existência dessa discussão. Para ele, não importa a escola. O valor está nas coisas que ele pode aprender. Poliana, de 11 anos, tem sua opinião bem-formada. Desde a pré-escola estudou em escola particular, mas depois que os pais se separam ela precisou ir para a mesma escola municipal Elisa Franco. Diante das duas realidades, Poliana prefere o ensino pago. “A escola pública é mais ou menos, não tem piscina, quadra coberta. O que vale a pena são as amigas”, diz a menina.
Eduardo Paes não concorda com Poliana. Eles são colegas de classe e, apesar de Eduardo nunca ter estudado em uma escola particular, ele possui as melhores notas da sala. O garoto explica o porquê das notas: “Minha mãe e o meu pai sempre estudam comigo à noite. Eles estão me ajudando a ser veterinário quando crescer.”
Não é difícil perceber que em meio aos desafios da educação brasileira há núcleos de excelência acadêmica. Não porque o dinheiro favorece, mas porque o compromisso e a responsabilidade permanecem. A professora Rute Bartarim, com 16 anos de sala de aula, explica o que professores de escola pública e particular devem fazer para evitar ver a escola como um negócio promissor ou um emprego garantido. Segundo ela, o segredo chama-se eu. “Para ir além dos desafios, é necessário doar um pouco de você mesmo todos os dias”. Damião e Rute não se conhecem, mas devem ter estudado na mesma escola: vontade e responsabilidade.
Cabreira