ORTEGA Y GASSET A MISTERIOSA INTUIÇÃO

"Em seu conto "A insinuação de uma explicação" - título original: The hint of an explanation (1948), Graham Greene (1904 – 1991) nos narra a história do maior dos mistérios, alheio a qualquer possibilidade de explicação: trata-se da tentativa fracassada de um abuso espiritual, no qual uma criança de 10 anos, sem se corromper, acaba por adquirir o conhecimento necessário para evitar o Mal – e, assim, combatê-lo, a partir do instante em que reconhece uma realidade simbólica que a transcende e da qual faz parte, embora seja ainda incapaz de explicá-la."

(...)

O pequeno David responde: “não foi consagrada”.

“Você acha que se eu colocar ambas sob um microscópio, você poderia notar a diferença? Como eu gostaria de botar as minhas mãos numa dessas suas, para prová-la e ver se há diferenças…Gostaria de saber que gosto tem o seu Deus”.

"Eis a essência de Blacker, por trás da fachada de mero padeiro que quer replicar a hóstia: a corporificação do mal, cujas intenções racionalmente expostas mascaram o desejo de usurpar o papel de Deus, contando com seu poder de barganha – uma armadilha sedutoramente disfarçada de interesse inofensivo (um jogo de trem) e que termina por servir de prisão. "

(...)

A farsa

“Eu sou eu e minha circunstância, e se não salvo a ela não me salvo a mim. Benefac loco illi quo natus es, lemos na Bíblia. E na escola platônica se nos dá como empresa de toda a cultura, esta: “salvar as aparências”, os fenômenos. Quer dizer, buscar o sentido do que nos rodeia.”

Ortega y Gasset, Meditações do Quixote.

Além de grande filósofo, Ortega y Gasset era um excelente escritor. Com sua técnica estilística, semelhante ao poeta, intencionava resgatar a autenticidade de certos vocábulos do idioma espanhol a fim de tornar evidente seu sentido filosófico. Em 1946, publicou no primeiro volume da revista El Espectador o artigo (infelizmente não disponível em português) El fondo insobornable, a respeito do escritor Pio Baroja. O que seria este fundo insubornável do ser? Para Ortega y Gasset, o fundo insubornável do ser é

“o núcleo último e individualíssimo da personalidade que está soterrado sob julgamentos e condutas sentimentais, que, de fora, caíram sobre nós. Somente alguns homens dotados de uma energia peculiar conseguem vislumbrar em certos instantes as atitudes daquilo que Bergson chamaria de “o eu profundo”. De quando em quando, chega à superfície da consciência a sua voz profunda.”

Ao escrever, nas Meditações do Quixote, “eu sou eu e minha circunstância”, Ortega y Gasset rejeita criticamente o idealismo. Ele é o filósofo da realidade radical, realidade em que radicam (radicar: do latim, enraizar) todas as demais realidades (das coisas, do eu); a verdadeira realidade é a do eu com as coisas; a realidade circunstante forma a outra metade das pessoas. Não há nem prioridade das coisas sobre o eu – como pensavam os realistas – nem prioridade do eu sobre as coisas – como pensavam os idealistas:

“A realidade radical é nossa vida. E a vida é o que fazemos e o que nos acontece. Viver é tratar com o mundo, dirigir-se a ele, agir nele, ocupar-se dele.”

Para Gasset, farsas são aquelas realidades que se fingem de realidade: a verdade do homem é a correspondência exata entre o gesto e o espírito, a perfeita adequação entre o externo e o íntimo. Falsear a realidade é não ouvirmos nosso fundo insubornável:

“Chamamos de farsas aquelas realidades que falseiam a realidade. Isso supõe que na realidade distinguimos dois planos: um externo, aparente, manifesto; outro, interno, substancial, que se manifesta naquele. A realidade externa tem a missão ineludível de ser expressão adequada da realidade interna, caso contrário é farsa. A realidade interna tem, por sua vez, a missão de manifestar-se, exteriorizar-se naquela, se não também é farsa. Exemplo: um homem que defende exuberantemente opiniões com as quais não se importa, é um farsante; um homem que realmente tem tais opiniões e, no entanto, não as defende nem as assume, é outro farsante.”

Ao amontoarmos nosso fundo insubornável com as ficções que contamos a nós mesmos, ou com ideias que nos contam e que aceitamos acriticamente, por hábito ou em virtude de nossas intenções utilitárias (evitar a dor, maximizar o prazer), tornamo-nos progressivamente estrangeiros diante do espelho – e essa incoerência existencial, para se sustentar, nos obriga a falsear a realidade. Ortega y Gasset oferece a ferramenta precisa para o diagnóstico de nosso estado de coisas: vivemos um mundo que caminha irrefreavelmente para um simulacro de realidade, cujo estabelecimento, numa espécie de ciclo vicioso perverso, além de depender de nossa ilusão de autossuficiência, reassegura sua validade. Essa ilusão de autossuficiência, que silencia nosso eu incorruptível e distorce nossa identidade, deve-se à perda da noção do sagrado. Ao cortarmos voluntariamente os vínculos que nos unem a uma realidade que nos transcende, somos amputamos daquilo que nos constitui essencialmente; e, esse vazio, significa nada mais, nada menos do que nossa desumanização:

“A ideia de homem não é uma questão de definições arbitrárias; ao contrário, o homem é descoberto em lugares históricos bem específicos e em situações bem concretas. Temos dois desses pontos nos quais aquilo que o homem é foi experienciado, e da experiência do homem no caso concreto a ideia de homem foi então generalizada, incluindo todos os homens. (…) Quando o homem, como tal, foi descoberto? E o que ele descobriu ser? Essas descobertas aconteceram respectivamente nas sociedades helênica e israelita. Na sociedade helênica, o homem era experienciado pelos filósofos do período clássico como um ser que é constituído pelo noûs, pela razão. Na sociedade israelita, o homem é experienciado como o ser a quem Deus dirige sua palavra, ou seja, como um ser pneumático [animado pelo sopro divino] que está aberto à palavra de Deus. A razão e o espírito são os dois modos de constituição do homem, os quais foram generalizados como a ideia de homem. O que significa ser constituído pela razão e pelo espírito? As experiências da razão e do espírito concordam no ponto em que o homem experiência a si mesmo como um ser que não existe por si mesmo. Ele existe num mundo já dado. Este mundo em si existe em razão de um mistério, e o nome deste mistério, da causa desse ser do mundo, do qual o homem é um componente, é Deus. (…) Pela procura do divino, o amoroso sair de nós mesmos em direção ao divino na experiência filosófica e o encontro amoroso através da palavra na experiência pneumática, o homem participa do divino. (…) A dignidade específica do homem é baseada nisto, em sua natureza teomórfica, de forma e imagem de Deus. (…) A perda de dignidade vem através da negação da participação no divino, ou seja, através da desdivinização do homem. Mas já que é precisamente essa participação no divino, esse ser teomórfico, que constitui essencialmente o homem, a desdivinização é sempre seguida de uma desumanização. (…) Tal desdivinização é a consequência de um fechamento deliberado de si mesmo para o divino, tanto para o racionalmente divino como para o pneumaticamente divino, ou seja, o divino filosófico ou revelado. Nesse sentido, falamos de uma perda da realidade. (…) As manifestações típicas dessa perda de realidade são aquelas em que a realidade do homem é colocada no lugar da realidade divina perdida, que sozinha fundamenta a realidade do homem, de tal forma que no lugar do fundamento do ser como causa do ser, o homem como causa do ser chega ao ponto da exageração na ideia de ser o homem o criador do mundo.”

Eric Voegelin, Hitler e os alemães.

Apesar de gradual, esta desdivinização do homem, que o escravizou neste mundo em decorrência da perda de contato com a realidade transcendente, agitou suas correntes com mais intensidade em dois momentos específicos de crise política e intelectual, a que não soubemos reagir adequadamente, e cuja farfalharia ainda ressoa em nosso tempo através de nosso desprezo pela existência do Mal e/ou nosso menosprezo pela parcela de culpa que nos cabe na perpetuação desse Mal. "

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Enviado por J B Pereira em 29/10/2017
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