Os revolucionários da liberdade
Flores da Cunha, 31 de março de 2003
Tudo transcorria normalmente e rotineiramente, no pacato povoado de Nova Trento, naquela manhã de domingo primaveril, de sol brilhante e céu azul, de 14 de outubro de 1923. A velha Maria, figura folclórica do local, alta, gorda e com aquele jeito desengonçado de andar, já havia instalado seu tabuleiro de doces de massa na praça, juntamente com a velha “Persa”, onde as duas procuravam vender as suas iguarias para o seu sustento. Também o velho Longhini, magro e bigodudo, com seu balaio de amendoins torrados, procurava atender a todos os seus compradores usuais, que já haviam assistido as primeiras missas dominicais. Alguns percorriam a pequena praça e trocavam idéias sobre as pequenas colheitas existentes na época, outros procuravam abastecerem-se nas casas comerciais de provisões para a semana toda, outros, bebericavam e conversavam despreocupadamente nos botequins ou vagando pelas estreitas ruas centrais do vilarejo. Porém a maioria da população, inclusive mulheres e crianças, encontravam-se na Igreja, assistindo a missa das 09h00min horas e que terminaria as 10h00min horas. Os cavalos, burros e mulas de propriedade dos agricultores, do interior do distrito, estavam amarrados em volta da praça, nas ruas mais centrais do povoado ou nos pátios das casas comerciais. Ninguém poderia imaginar que essa tranqüilidade, dentro de poucos instantes seria quebrada e por longo tempo os moradores daquele pacato povoado sofreriam grandes perdas e viriam valorosos homens perderem a vida numa batalha que estava prestes a acontecer.
Alguns agentes secretos a serviço dos republicanos radicais e absolutistas, orientados por José Dal Zott, mais conhecido pela alcunha de “Beppi Polenta”, no dia anterior, tinham avisado a guarnição “borgista” de Caxias do Sul, que podiam atacar Nova Trento, porque o povoado estava praticamente desguarnecido, com somente sete ( 7 ) revolucionários.
Realmente, naquela manhã de 14 de outubro, o número de revolucionários era de somente sete homens, comandados pelo Capitão Mariano Pedroso, sendo que cinco ( 5 ) estavam aquartelados ( Mariano Pedroso, Quintino Biazus, Antonio Scur, Giuseppe Castelan e o menino Bertelli, mais conhecido por “Caser”, de 15 anos de idade ) e, os dois ( 2 ) restantes, patrulhavam as ruas ( Rodolfo Fortunatti, mais conhecido por “Storti” e o outro “Barbarossa”, natural de Veranópolis ( Alfredo Chaves ).
O contingente “borgista” era composto de trinta e cinco ( 35 ) homens, sendo quinze ( 15 ) de tropa regular da Brigada Militar, sendo equipados com uma arma automática, além de outras, comandados pelo alferes Domingos Mazzilli e, vinte ( 20 ) de tropa irregular ( provisórios ), mais conhecidos por pé no chão, comandados pelo alferes provisório Romalino Gomes, que cuidadosamente e em formação de combate, entraram na vila sorrateiramente, pelo lado Sul da antiga rua Dr. Parobé ( Av. 25 de julho ) e, ao chegarem no cruzamento com a antiga rua Gal. Marques de Souza ( Rua Severo Ravizzoni ), conforme se vê no mapa anexo, começaram a formar as duas primeiras frentes de combate, para atacar o quartel dos assisistas. A primeira subiu pela antiga rua Marques de Souza ( Rua Severo Ravizzoni ) e penetrou na quadra n.º 62, pelo lado Sudoeste, tomando posição a 40 metros do quartel, a segunda, penetrou pelo lado Sul da quadra n.º 54 e foi tomar posição no lado Nordeste da referida quadra, a 35 metros do quartel, a terceira frente seguiu pela antiga rua Dr. Parobé ( Av. 25 de julho ) até o cruzamento com antiga rua Vítor Emanuel ( Rua Maria Dal Conte ), subindo por esta protegidos por cinamomos, chegando a 40 metros do quartel revolucionário, os demais, em número menor, formando a quarta frente seguiram pela antiga rua Dr. Parobé ( 25 de julho ), até o cruzamento com a rua Dr. Montauri, nas proximidades da Igreja Matriz, onde também tomaram posição de combate.
Aproximadamente às 10h00min horas, no momento da saída da missa, os borgistas, nas três primeiras frentes de combate abriram fogo contra o quartel assisistas, simultaneamente, ocasião em que foi atingido no coração, tendo morte instantânea, o revolucionário Antonio Scur, a quarta frente, pensando que os colonos que saiam da missa também fossem revolucionários em fuga, abriram fogo, que por muita sorte ou falta de boa pontaria, não feriram ninguém.
Ao perceberem o ataque ao quartel, os quatro revolucionários que restaram lá dentro, tomaram posição de combate nas janelas do sobrado e abriram fogo contra os atacantes que pouco a pouco se aproximavam do prédio. O Capitão Mariano Pedroso, mais conhecido por Marianinho, lutou bravamente, apesar de ferido na perna esquerda e sangrando muito. Quintino Biazus, passando de uma janela para outra, no alto do sobrado, atirava, ora contra os que atacavam pela antiga rua Demétrio Ribeiro ( Rua Frei Eugênio ) e, ora para os que o faziam pela antiga rua Vítor Emanuel ( Rua Maria Dal Conte ) e, apesar de ferido gravemente após 30 minutos, mais ou menos do início do ataque, continuou na luta, disparando seu fuzil contra os atacantes, até a vitória final dos revolucionários. Giuseppe Castelan, mais conhecido por Beppi, também teve destaque especial na defesa do quartel, e após, juntamente com os outros, na perseguição dos atacantes, até estes abandonarem a vila. Salientou-se grandemente e com muita bravura o menino Bertelli, que como Quintino, corria de uma janela para outra, jogando granadas de mão nos atacantes, pois que alguns chegaram a menos de 7 metros do quartel.
Rodolfo Fortunatti, mais conhecido por “Storti”, encontrava-se na parte mais baixa da antiga Rua Demétrio Ribeiro ( Rua Frei Eugênio ), no cruzamento com a rua Júlio de Castilhos e ao perceber o ataque das forças “borgistas” subiu pela mencionada artéria até as imediações do Convento dos Capuchinhos, a uma distância de 100 metros do quartel assisita atacado. Bem municiado e exímio atirador que era, foi avançando, protegido por cinamomos e plátanos, atirando sempre, chegando juntamente com Barbarossa, a menos de 30 metros dos atacantes e, na retirada destes continuaram atirando e perseguindo-os, até que saíssem da vila.
“Barbarossa”, cujo nome e prenome continuam ignorados, tinha esse apelido por ter a barba ruiva. Este ao perceber o ataque inimigo, saiu do pátio do Hotel União, na rua Dr. Parobé (Avenida 25 de julho ), onde se encontrava e, montando um belo cavalo branco, entrou no meio de um grupo de soldados “borgistas” que formavam a quarta frente de combate, no cruzamento da citada artéria com a rua Dr. Montauri, dispersando-os, quando então o referido cavalo foi ferido na anca e caiu, depois disso, a pé, de fuzil a tiracolo, num corpo a corpo, lutou de espada na mão direita e pistola automática “Parabellum” na mão esquerda, pondo em retirada os restantes, já bastante desorientados, em seguida subiu pela rua Dr. Montauri até o rua Demétrio Ribeiro ( Rua Frei Eugênio ), juntando-se ao “Storti”.
Houve correria dos colonos, gritos, muita confusão, gente desorientada que procuravam abrigo nas poucas casas de alvenaria, cantinas ou porões, ajudou bastante na vitória do assisistas, porque os atacantes, que nas três frentes principais de combate, haviam chegado a poucos metros do quartel, ao perceberem o fogo cruzado dos assisistas no cruzamento das ruas Demétrio Ribeiro ( Rua Frei Eugênio ) e Vítor Emanuel ( Rua Maria Dal Conte ), junto com os estrondos e estilhaços das granadas lançadas pelo menino revolucionário “Caser”, e no meio de toda aquela balbúrdia, entraram em pânico, tomando também, os colonos desorientados por revolucionários em ação, começaram então a retirada, tendo a primeira frente de combate, juntamente com a segunda se juntado à terceira, retirando-se todos pela rua Vítor Emanuel ( Rua Maria Dal Conte ) até o cruzamento com a rua Dr. Parobé ( Av. 25 de julho ), daí, seguiram por esta até o cruzamento com a rua Dr. Montauri, onde a eles se juntou o restante da quarta frente de combate, sempre, para garantir a retirada em ordem, respondendo ao fogo dos assisistas que os perseguiam, daí, seguindo pela rua Dr. Montauri, rumo a Oeste, chegaram até a metade da praça, onde haviam ficado a maior parte dos cavalos dos colonos e, para apressar a retirada, pilharam os mesmos e saíram montados neles, seguindo até o cruzamento com a Av. Borges de Medeiros, onde encontraram a carreta do Sr. Giuseppe Martinelli, ainda com os 8 animais muares atrelados, pois este recém havia chagado de viagem, obrigaram-no a acompanha-los com o referido veículo, que havia sido por eles carregado na hora, enquanto Martinelli ainda se encontrava dentro de casa ( presume-se que a carga tenha sido de mortos e feridos ), daí, todos a cavalo e escoltando a carreta, subiram pela Av. Borges de Medeiros até a rua Gal. Marques de Souza ( Rua Severo Ravizzoni ), onde dobraram à esquerda, subindo por ela até encontrarem novamente a rua Dr. Parobé ( Av. 25 de julho ), daí dobraram à direita, seguindo viagem para Caxias do Sul.
Segundo o que foi relatado depois pelo Sr. Giuseppe Martinelli, não sabia que carga levava no veículo e, na viagem foi sempre escoltado pela força “borgista”, com a advertência de não olhar para trás e nem descer nos declives para fechar o breque, o que era feito por um dos soldados.
O número de baixas dos “borgistas”, até hoje continua uma incógnita, porém, que também sofreram baixas, disso não se têm dúvida, porque, se assim não fosse, na retirada apressada, após pilharem os cavalos dos colonos, não teriam necessidade de requisitar a carreta. A dúvida paira sobre o número de mortos e feridos dos “borgistas”, porque quando começaram a retirada, no final do combate, ninguém do povo se encontrava naquele trecho da praça e ruas com medo de um contra-ataque ou represálias de parte dos invasores derrotados, por isso não houve testemunhas que pudessem enumerar a quantidade de baixas. Manchas de sangue foram vistas posteriormente, nos locais onde os “borgistas” estavam entrincheirados, e também no trajeto da retirada até a casa do Sr. Giuseppe Martinelli, porém, conforme relatou este, na carreta não ficou nenhum vestígio de sangue, porque aos chegarem a Caxias, na Intendência Municipal, foi impedido de presenciar o descarregamento da mesma, quando removeram até a palha de trigo que estava no veículo, ficando o chão do mesmo bem limpo.
Às 11h30min, mais ou menos, a vila voltou à calma, com os cinco revolucionários restantes patrulhando as ruas, inclusive o Cap. Mariano Pedroso, apesar do ferimento sofrido na perna esquerda sangrar muito.
Quintino Biazus, primeiramente foi socorrido pelos companheiros de luta e, após, pelos membros da Cruz Vermelha local ( deles a última a falecer em nossa cidade era a Vva. Dona Anunciata Baldissera Lavoratti, que foi casada com o revolucionário Luiz Lavoratti ), que também fizeram a comunicação telefônica para Caxias, solicitando a vinda da Cruz Vermelha de lá, enquanto numa padiola inúmeras pessoas carregaram Quintino por um longo trecho de estrada que conduzia a Caxias, quando encontraram os membros da Cruz Vermelha de Caxias, com um médico, enfermeiras e quatro soldados do exército nacional, para garantir a remoção do ferido até o hospital de Caxias. Quintino veio a falecer em conseqüência do ferimento recebido, no dia 16 de outubro. Seu enterro em Caxias teve grande acompanhamento e enorme pompa fúnebre. Ao velho Antônio Scur, após a sua morte foi lhe administrada a extrema-unção pelo francês Frei Angélico onde depois foi enterrado em Antonio Prado. Rodolfo Fortunatti, conhecido como Storti, dias após morreu em combate ocorrido em Caxias, e igualmente, o menino Bertelli, conhecido por “Caser”, no combate de Bento Gonçalves.
Estes bravos revolucionários merecem homenagens do nosso povo, pois até hoje são esquecidos, não lutaram em vão, para comprová-lo, aí está a liberdade que estamos usufruindo, conquistadas por eles, com suor e lágrimas e, inclusive, com o sacrifício da própria vida.
Das memórias do meu falecido pai Claudino Antônio Boscatto, que tanto batalhou para que estes valorosos homens recebessem uma digna homenagem dos órgãos oficiais da nossa sociedade.
Flores da Cunha, 31 de março de 2003