Visita de médico III
Água que passarinho não bebe
Caldas Novas

Eu dormi um hora boiando na água, numa piscina com uma temperatura de uns 40 graus...Talvez mais, não sei. Era madrugada e eu tinha colocado minha cabeça presa num banco de granito, que se prendia ao fundo da água. Meu corpo boiava como se eu estivesse num útero. Minhas pernas estavam abertas e minha boca também - como uma perereca branca no brejo.

Eu estava numa piscina com água natural, à temperatura que vinha das profundidades da terra. Clima agradável e não ventava. Era madrugada e eu ouvia apenas o silêncio entrecortado por algumas pessoas que habitavam o mesmo berço dos deuses – aquela piscina. Ninguém perturbava. Éramos expectadores e usufruíamos aquela natureza divina.

Acordei pelo balanço da marola que a água fazia e olhei para o céu. Naquele instante, eu não imaginava aonde estava e me assustei com o que vi: fumaça, muita fumaça em volta de mim, causada pela evaporação das águas quentes. Senti-me flutuando como se tivesse cheirado todas, apesar de nunca ter feito esta bobagem. Ali nem precisava: a gente entra em alfa, num nirvana.

Eu parei alguns segundos da minha vida para perceber que eu estava diante de um fenômeno da natureza e no “centro” dele. Estava tão relaxada que nem percebia a hora. O céu apenas mostrava a lua e nada mais. A mata estava silenciosa - apenas grilos e sapos faziam sons, educadamente, para não me incomodar.

Estava no Centro do Brasil, no centro da América Latina, num parque termal aonde as águas chegam do fundo da terra, aquecidas pelas rochas.

Devo ter babado ou roncado... As pessoas se assustavam por eu estar ali - uma mulher maravilhosa, sozinha, dormindo àquela hora da noite, gostosa, banhada apenas pelas águas do Brasil e sem namorado por perto...

Nadei uns instantes e me vesti. Saí arrependida de não ficar ali até o amanhecer. Meus amigos todos dormiam e eu não entendia como poderiam desprezar tanta beleza e tanta bênção divina. Talvez dormissem por não saberem que eu fui ali para encontrar coisas novas (e encontrei), mesmo veladamente e solitariamente.

Eu estava em Caldas Novas, sul de Goiás, às margens do lago da represa de Corumbá e ao lado da Serra de Caldas.
 

Apesar da enorme vazão de águas, o que é impossível de outros países conceberem, nós estamos tendo no Centro- Oeste do Brasil uma deficiência de água. Só que esta deficiência não é percebida, pois é imensa a quantidade de água jorrada todos os dias pelas nascentes, a ponto de eles não terem o menor controle efetivo.

As águas das chuvas penetram no solo e descem, em média,1500m, através de grandes fraturas do solo. Os gases do centro da terra aquecem as pedras e esquentam as águas. Elas saem das nascentes com uma temperatura entre de 35 a 60 graus centígrados. Nas piscinas naturais eles misturam água fria para não ficar insuportável ao ser humano.

Se é afrodisíaco ou não, não tive oportunidade de saber, pois “Dona Menô” não estava presente - ela estava a quilômetros de mim naquele dia...

Os primeiros habitantes da região foram os índios e sabe-se lá por quanto tempo... No século XVIII, desbravadores, como Bartlomeu Bueno Filho, fizeram pouco do local por não mais haver ouro nas fontes do Rio Quente. Cinqüenta e cinco anos depois outros bandeirantes sitiavam a região, talvez prevendo instintivamente que no futuro a maior fonte renda seria o turismo...

Até o meio do século XX a região só teve proprietários nobres e tudo ia muito calmo, até o desenvolvimento arquitetônico dominar a localidade com grandes construções, que contrastam com a simplicidade do resto da população - muitos condomínios, muitos hotéis, termas e muita gente pobre em volta.
 

Caldas Novas é o maior instância hidrotermal do mundo, apesar de estar ainda muito aquém da infra-estrutura turística que o Brasil merece.
 

Verifiquei estes contrastes a seguir:

As pessoas dão BOM DIA quando atravessam a rua, enquanto você está parado no sinal vermelho do trânsito. Ainda têm o ranço de uma cidade do interior, mesmo recebendo turistas de todo o mundo.

Os garçons enchem seu prato de comida como se nós estivéssemos vindo da guerra, e ai de você reclamar!

Eu falei:
 

- “Você pode me servir arroz com pequi? Quero conhecer esta coisa que falam tanto, que machuca nossa boca e a gente tem que se chupar ao invés de comer”.

O garçom falou:
 

- “Guria, tu estás numa casa de sulistas. Aqui não se serve coisa de goiano!”.

Eu ndaguei:
 

- “Mas, poxa, como é que tem feijoada?! Isso é coisa de carioca!”.

E o garçom:
 

- “Assim também é demais, cachopa. Feijoada é internacional!”.

Deixei pra comer pequi depois que cheguei no Rio, trazendo alguns quilos de coisas a mais: pimenta, cachaça, pequi, biquínis, que comprei nas feirinhas e sei lá mais o quê...

Os cybercafés são precários e eu quase me vi louca por não poder acessar meu site, ver quem se cadastrou ou conversar com o meu povo.

Existem muitas áreas sem luz e baldias, muita terra desabitada, muita casa pobre e muitas motocicletas. Quase não vi mansões. Eu acho que o pessoal do Centro - Oeste prefere omitir suas riquezas e não ostentar luxo. Ô povo pra ter motos como o goiano! São milhares espalhadas por todo o Estado! Talvez pelas extensas distâncias a serem percorridas, aprenderam que a moto é o veículo mais barato e prático para a locomoção. Ou, então, algum inteligente tomou a frente e montou o “negócio da China” lá. Quando a gente vê no Rio dois rapazes no escuro, numa mesma moto, pensamos logo em assalto. Lá isso é a coisa mais normal.

E o céu?... Vou ficar com este céu na minha cabeça a vida toda! As estradas são maravilhosas e muito bem sinalizadas.
 

Dizem que goiano não respeita sinalização e tem fama de “barbeiro”. Ao invés disso, eu não vi nada disso e, sim, um povo civilizado.

Não percorri as trilhas ecológicas, não fui no Parque das Águas, nem conheci os monumentos, mas, gente, eu vi foi água, muita água!

O Oriente Médio, Portugal e outros países, que sofrem com a escassez de água, iriam babar diante de tanta fartura...

Detalhe:
 

Eles têm um sotaque de mineiro, com um toque de baiano e a candura do capixaba (do Estado do Espírito Santo).

Não ligam para o carioca e nem estão aí para status ou aparência. Eu me senti em casa!
 

E eu notei (não sei se é real) que a gente flutua nas piscinas termais mais que no mar ou nas piscinas de água canalizada. Eu tentava mergulhar e sentia resistência da água. Será que foram meus gases ou isso é relevante?

Outra coisa engraçada:
 

Devido à alta concentração de enxofre nestas águas, o cheio das piscinas durante o dia era de um grande “pum” dentro d’água...

Com cheiro de peido ou não, eu tenho a maior vontade de voltar naquele lugar e ficar por mais tempo.

Eu deveria parar de fazer “visita de médico” a lugares tão sublimes...

Leila Marinho Lage
Rio, 07 de abril de 2007
http://www.clubedadonameo.com


Leila Marinho Lage
Enviado por Leila Marinho Lage em 17/08/2007
Reeditado em 21/02/2009
Código do texto: T611307
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