COOL MEMORIES II: 1987-1990 – Memórias Refrigeradas: Uma tentativa I

Tradução parcial de uma tradução para o inglês do livro do autor francês Jean Baudrillard. Prefiro a tradução livre de alguns trechos quando o contexto do meu público-receptor difere muito do de origem.

A categoria do artigo no RecantodasLetras foi escolhida com base no tema hegemônico das citações, conforme categorização que fiz abaixo. A ordem escolhida foi a do surgimento das citações, exceto para a categoria residual, que ficou por último.

Agreguei comentários meus fora das aspas, como terão a múltipla oportunidade de ler.

#Sociedade

“Um acidente num monitor de tráfego aéreo, o ataque cardíaco de uma velha, um foguete em chamas, uma telha que cai, tudo engatilha um processo de responsabilidade infernal. Crimes reais seriam preferíveis, crimes causados pela paixão e não pela poluição, pelo mal e não pela profilaxia e pela inócua masturbação mental de uma consciência dementizada.”

“Cidades e vilas antigas possuem uma história; as americanas, sendo verdadeiras bombas urbanas sem planejamento, possuem verdadeiras expansões epidêmicas, incontroláveis e vertiginosas. Cidadezinhas recentes não têm nem uma nem outra coisa. Elas sonham com um passado impossível e uma explosão improvável.”

“a terna loucura dos subúrbios”

“Ação ou isenção? Votação, petições, solidariedade, informação, direitos humanos: todas essas coisas são extorquidas de você sob a forma de chantagem promocional ou pessoal.”

INDOLÊNCIA, INATIVIDADE

“Se gerações de camponeses jogaram a vida fora com trabalho duro, certamente devemos reconhecer, outrossim, que eles não gastaram mais tempo em labuta do que em momentos de preguiça.

Meu avô parou de trabalhar quando ele morreu: era um camponês. Meu pai parou bem antes do seu tempo: funcionário público, aposentadoria precoce (ele pagou por isso na forma de uma hipocondria mortal, mas sem dúvida isso foi como tinha de ser). Eu nunca comecei a trabalhar, tendo usufruído bem cedo de uma situação marginal e sabática: a de professor universitário. Quanto às crianças, elas não tiveram filhos. É então que a seqüência prossegue até o estágio supremo da impassibilidade.

Essa inatividade é rural na essência. É baseada num senso de mérito e equilíbrio <naturais>. Você nunca deve fazer demais. É um princípio de discrição e respeito pela equivalência entre trabalho e terra: o camponês dá, mas cabe à terra e aos deuses dar o restante – a maior parte. Um princípio de respeito pelo que não vem do trabalho e nunca virá.

Esse princípio traz consigo uma certa inclinação para acreditar no destino. A indolência é uma estratégia fatal, e o fatalismo uma estratégia de indolência. É dessa correlação que derivo uma visão de mundo que é ao mesmo tempo extremista e preguiçosa. Eu não vou mudar nesse aspecto, não importa como caminhem as coisas. Detesto a agitação buliçosa dos meus concidadãos, detesto a iniciativa, responsabilidade social, ambição, competição. Esses valores são exógenos, urbanos, coisas eficientes e pretensiosas. São qualidades industriais, enquanto que a indolência é uma energia natural.”

OBS: Eu sou o pai e o avô de Baudrillard num só: funcionário público que não se aposentará. Semi-homem rural. Camponês de terno. Meu pai concentrou ambivalentemente as duas vidas, não ao mesmo tempo, intercaladas, mas nos extremos: o funcionário dedicado e de chefia, ideal burocrático, décadas a fio, e depois, ainda antes da velhice, o “homem fazendeiro”, em ócio idílico, o sonho-mor da meia-idade industrial fatigada. Overdose decantada. Meu filho (?!) poderá ser qualquer coisa, não há nada que nos diga se estamos marchando para frente ou para trás, em que pese eu ter renegado a universidade com todas as forças... Ou quem sabe estamos estagnados no Zeitgeist da França da Guerra Fria, a da juventude baudrillardiana: ainda não tivemos nosso Maio de 68.

“Na falta de um destino que vivenciar, você só pode ironizar sobre as coisas – compensação bastarda.” “fui forçado a admitir a mim mesmo que minha imaginação conceitual advinha, no fundo, da minha impotência e esterilidade hereditária. Vingança do fatal (oh estratégias!).” “uma reflexão pálida do demônio da entropia”

“Hoje os grevistas são utilizadores-de-greves. O mesmo para greves de consumo.” Não diga sim ao sindicato, diga ‘mais ou menos’.

“Firmes convicções só podem ser derrotadas pela imbecilidade mais desenfreada.” D***, o eterno “último a falar”, irrefletido no espelho.

“Deveríamos nos admirar não de que haja tanto caos e violência, mas de que haja tão pouco e tudo funcione tão bem. Dados o nível de agressividade de cada motorista, as fragilidades dos equipamentos e a correria do tráfego, é um milagre que milhares não morram todo santo dia, é um milagre que não nos matemos uns aos outros senão raramente e que só uma pequena porção dessas possibilidades desastrosas atinjam a fruição. Quando se vê o imenso caos burocrático, o número de decisões absurdas, a fraude universal e o desperdício de nossas virtudes cívicas, a única reação natural é maravilhar-se diante do milagre diário dessa máquina que, de um jeito ou de outro, continua a funcionar, puxando consigo em sua órbita todo o detrito que ela mesma gera. Afora quebradeiras episódicas (não mais comuns, definitivamente, que tremores de terra), é como se uma mão invisível gerenciasse toda essa bagunça, normalizando a anomalia. Esse é talvez o mesmo milagre que nos previne de sucumbir, dia a dia, à idéia da morte ou à melancolia suicida.”

“Num sistema tão perfeito quanto este, basta que te tirem o café-da-manhã para que te sintas imprevisível.”

“mesmo os suburbanos possuem um ânimo pioneiro ou animal”

“As vitrines de loja, a flora intestinal da cidade.”

“limpamos nossa consciência como brancos; nos tornamos mais brancos que brancos.”

“A pessoa cujo stereo quebra um dia e nunca mais em sua vida volta a ouvir música.

A pessoa que perde seu avião por puro azar e volta pra casa para jamais sair de novo.

E por que nâo?”

“A condição ideal do trabalho é a indolência. A vacuidade espacial da viagem é o equivalente da vacuidade temporal da desídia. Você pode se mover em todas as direções e o ritual do espaço é confortavelmente o equivalente do ritual do confinamento numa sala fechada.

(...) você pode dissolver no nirvana da viagem e perseguir tarefas burocráticas como caçaria sua própria sombra. O que ainda é melhor do que perder sua sombra por trabalhar.”

“É muito fácil se adaptar à vida australiana ou americana porque elas são o grau zero do estilo de vida. Mas o grau zero é também o da exterminação de todos os outros, e a tentação do fácil é a tentação da morte.”

“essa ideologia rousseauísta da boa natureza apenas oculta pobremente a consciência obscura de uma predestinação para o mal”

“Há um quê de orgulhoso no ato de evitar se repetir. Você está se iludindo se pensa que os outros prestaram atenção cuidadosa no que você disse, o que é muitas vezes o caso. Na outra mão, há qualquer coisa de uma modéstia exagerada nisso de repetir a mesma história dez vezes: porque isso é agir como se os outros não estivessem ouvindo, o que também não é sempre verdade.”

#Literatura & Artes em Geral

“É assim que o tédio funciona, como um súbito estalo na linha telefônica cerebral que nos conecta à vida. É como algo numa quina de nossas vidas que se recusa a morrer. É como com o homem da estória de Buzzati-Traverso, que, chegando em casa à noite, esmaga um besouro enquanto avança corredor adentro. Ele não consegue dormir, sua mulher não pára de ziguezaguear ruidosamente pela casa, o galo canta no meio da madrugada, o cachorro se torna agitado. O homem se ergue da cama e, no corredor, percebe o besouro, ainda agonizando. Ele o pisoteia de uma vez por todas, terminando o serviço, no que o lar recai no silêncio outra vez. Sua esposa deita e ressona, o cachorro se aquieta e tudo se torna tranqüilo.”

“Escrever numa pressa enorme, quase até o ponto de haver terminado antes de haver começado, produz uma leve ansiedade – a impressão de ter concluído rápido demais, de que você está se destruindo com impaciência. Uma ansiedade ligada ao eclipse do Outro e, ao mesmo tempo, ao eclipse do conteúdo referencial. Um efeito de eletrocussão, de recuo – igual o de uma arma. Tudo sobre o que se escreve está desaparecendo – essa é a única razão convincente para escrever. Jenseits des eigenen Schattens [O Acolá da própria Sombra].”

“Me pedem para escrever ficção. Ficção? É o que eu já faço. Meus personagens são um número de hipóteses malucas que maltratam a realidade de várias formas e cada um deles eu mato no fim, quando já cumpriram seu papel.” No meu livro agathachristieano, o bandido não é descoberto no final.

“ora, se até para obras de arte (nas quais o autor dá sempre o seu melhor para eludir qualquer tipo de interpretação) arranjam significados, por que não posso ser o crítico-entusiasta do belo movimento de implosão da vazia fascinação pós-hollywoodiana?”

“os artistas plásticos, quem diria, me lêem me levando a sério, literalizando todas as minhas metáforas”

“toda a nulidade do mundo contemporâneo na brancura da escrita. Com a piscadinha vulgar da pós-modernidade inclusa no pacote. Mas, diante disso, Camus é quase um clássico metafísico inatingível.” A era em que “pintura ruim” não mais é pintura ruim... Deduza as consequências, grave uma britadeira no estúdio e ganhe milhões, sem dividir com o inventor da britadeira...

“Já foi dito que a probabilidade de um macaco digitar o Hamlet é infinitesimal. Mas a probabilidade não é só baixa; é zero. E menor que zero, já que, se houvesse uma oportunidade do macaco conseguir, significaria que Hamlet seria só uma probabilidade em bilhões, o que é estúpido. É o sonho dos cretinos da estatística que, exaurindo as probabilidades, você possa terminar escrevendo o Hamlet. Mas isso é impensável: o Hamlet não é da ordem da probabilidade. Ele é tanto radicalmente improvável quanto supremamente necessário. Probabilidade minúscula, necessidade máxima. O mundo é o que é e isso é tudo. A probabilidade de que ele pudesse ser diferente ou que o Hamlet eventualmente nunca tivesse existido é a única chance que resta a uns sujeitos de segunda classe de reinventá-lo em seus computadores. Ou, pensando bem, a única chance em aberto para os macacos. (Nada tenho contra os macacos; isso é uma metáfora.)”

“Comunicação é para a linguagem o que a reprodução é para a sexualidade.” Um mal necessário.

“No escrever, o momento mais encantador é o da condensação, elipse, rarefação. Construir núcleos cada vez mais densos em torno dos quais a luz se desorienta, e o pensar também”

“Acho bom ter feito as pazes com esse livro, uma vez que a expulsão de objetos hostis é extremamente perigosa. É como um extravio num estado de pecado mortal. Ao invés de seguir seu caminho e entrar em órbita, o objeto força sua passagem de volta nas nebulosas profundezas do corpo. Exatamente o título inicial: <A vida, movendo-se por si mesma, do que está morto> [Memórias Refrigeradas]. E a morte do livro deve, de fato, ser vista como a vingança do mundo físico (e dos outros) contra o simbólico que o(s) nega – um ato sacrifical que é parte do livro em si mesmo. É por isso que você tem que se livrar dele e repassá-lo para outras pessoas, porque, como com qualquer bem simbólico, o mal e a transparência do mal não são coisas de que você deva desfrutar sozinho. É a regra do sacrifício.”

“O paradoxo de Groucho: não quero pertencer a nenhum clube que me aceite como membro.”

“Casanova conta como ele começou a ter hemorragias nasais por volta dos 4 anos e que foi aí que ele começou a se sentir vivo, sentir que era um ser humano.”

#Ciência&Tecnologia

“A indiferença cresce conforme o destino se externaliza em tecnologias sofisticadas. Todas essas manipulações médicas e genéticas que se dizem descobridoras de todos os segredos do corpo apenas tornam as pessoas indiferentes a seus próprios corpos. Todas essas tecnologias que exaltam ou exasperam o pensamento apenas o tornam indiferente a si mesmo. Alguma vez alguém disse: Le câblage est accablant. Mais ou menos o seguinte: Conectar-se é fatigante.”

“O compact disc. Ele não se desgasta, mesmo após usado. Espantoso. É como se você nunca tivesse usado. Então é como se você não existisse. Se as coisas não envelhecem mais, então é porque é você que está morto.”

“A estupidez do exagero dos meios para um fim. A única coisa comparável à força bruta e ao esforço desproporcionais empregados por três escavadeiras que fazem o serviço normalmente alocado a dois trabalhadores manuais é a pletora de referências, bibliografia e registros em cartões de biblioteca necessária em exercícios pré-natais para o parto sem dor de uma pequena e digna de pena verdade objetiva [, necessária para construir as máquinas].”

“Assim como as defesas do corpo precisam ser neutralizadas antes de um transplante cardíaco, a imunidade da mente precisa ser desligada antes de ela ser inicializada no mundo da inteligência artificial (computadores).

Os intelectuais estão condenados ao desaparecimento quando a inteligência artificial estourar no mercado, igual quando os heróis do cinema mudo desapareceram com a ascensão do cinema falado. Somos todos Buster Keatons.”

#Política

“Toda a arte da política hoje pode ser resumida assim: chicotear a indiferença popular.”

“se tivéssemos depositado todas as nossas energias para consumar a revolução de 1789, fato é que não teria sobrado nenhuma energia para celebrá-la.” “A energia usada para mentir não pode ser usada para falar a verdade. São duas energias totalmente distintas. Talvez que ambas as vertentes jamais se cruzem em algumas individualidades peculiares. Isso explicaria vermos alguns sujeitos que são perfeitamente sinceros e perfeitamente hipócritas, sem a menor imagem de contradição. § Toda transfusão de energias heterogêneas leva a sérias desordens (como um erro numa transfusão de sangue). Querer comungar energia sexual e energia mental soa tão aberrante quanto pedir que células cerebrais executem funções do fígado. Há uma energia específica para palavras e uma energia própria para imagens. Nem sempre apenas cópias se anulam, mas até figuras opostas! Canibalismo somático.” “Em suma, a energia que se dissipa comemorando uma revolução nada tem a ver com a energia-matriz que a gerou anteriormente.” “a energia das eleições é desespero; ainda que multiplicada ao infinito, não transmuta numa só esperança ou fato político” “Também é mentira que hoje em dia o social <perde> uma vez que temos muitas expensas militares.”

“O último avatar do desejo [Cicciolina na Itália] se torna membro do parlamento – fantástico! [O que vem a seguir, a Playboy da mulher do Cunha?!] Em suas aparições televisivas pré-rafaelíticas [pré-renascentistas], ela parecia a única a estar viva, a única natural! Tendo exorcizado toda a modéstia, extravasado toda a imodéstia, ela finalmente se tornou, em sua doçura espectral, sedutora.”

“Contrariamente à superstição, que consiste, sob o véu dos direitos humanos, no estender responsabilidades ao infinito, ansiamos por coisas que nos aconteçam pelas quais não sejamos os responsáveis, e nem nos deleguem essa responsabilidade.”

“consenso: talvez seja ele o vírus epidêmico e devastador de nossos tempos modernos, contra os quais produzimos menos e menos anticorpos.”

“A má fé para com a história é total: Heidegger, Hitler, os campos, o Terror. Isso tudo é insultado e repudiado, mas totalmente lavado e glorificado, não obstante, num conta-gotas midiático. Pelos ditames da moralidade, nada disso deveria ter existido, não mais do que o ato homicida de Caim ou o extermínio dos selvagens. Mas teríamos de ter inventado tudo isso da mesma forma – senão, do que é que falaríamos?”

“Um cego vai virar dono de uma cadeia de canais de TV na Espanha (depois de se livrar do Presidente do Instituto para os Deficientes Visuais ao empurrá-lo poço do elevador abaixo).

A luta entre os incapacitados e os cegos pelo direito de vender bilhetes de loteria é apenas o prelúdio de uma luta pelo poder. Um dia, ele vai estar todo nas mãos dos incapazes. Comandar os outros, ou ser comandado por eles, pressupõe um tipo de mutilação. Então, como nos computadores e eletrônicos, aqueles incapazes de nascença – aqueles com vantagens hereditárias – serão cada vez mais capazes (com o perdão do trocadilho).

As hierarquias do futuro serão hierarquias da falta. Os intelectuais, que estiveram até hoje bem-situados na corrida, perderão os privilégios, já que seu handicap é apenas simbólico e não se compara a um bom handicap físico, seja anatômico seja cerebral, que é mais visível, mais efetivo, mais eficiente. Não estamos mais na idade da metáfora.

(...) Políticos e intelectuais serão sucedidos por mutantes de verdade, esses sem um gene ou cromossomo ou com extras (quando o vírus da AIDS tiver se tornado parte da herança genética da humanidade), ou mesmo por mutantes artificiais que não terão reprodução sexual - (...) sucessores aos eunucos que infestavam os haréns da antiguidade e os coros da Renascença, e aos hemofílicos impotentes que comandavam impérios, etc.

Isso não é pejorativo. É apenas a expressão da lei que diz que só o indivíduo a quem falta algo é capaz de preencher o vácuo de poder.”

“Toda sociedade deve se escolher um inimigo, mas ela não deve tentar exterminá-lo. Esse foi o erro fatal do fascismo e do Terror revolucionário. Mas é o mesmo erro cometido pelo terror democrático, que agora elimina o Outro com ainda mais segurança que o holocausto. Se não hipostasiamos mais nenhuma raça diretamente, damos a cada indivíduo o direito de escolher o que é melhor para si, inclusive na reprodução e perpetuação do endógeno – e o indivíduo ainda é racista. Aliás, é o único racista.”

“Não há prova mais clara de que o poder do Ocidente está ancorado na aflição do resto do mundo inteiro, e de que o espetáculo dessa aflição é sua glória suprema, do que a inauguração, no telhado do Arco da Defesa, na França, com um bufete oferecido pela Fundação dos Direitos do Homem, de uma exibição das melhores fotos da miséria.”

“Resumo da minha história: patafísico aos 20 – situacionista aos 30 – utopista aos 40 – transversal aos 50 – viral e metaléptico aos 60.”

#Economia&Finanças

“Uma economia da poeira e da sujeira é uma aventura em si mesma e uma economia das aranhas, além de um desafio à natureza, é incorrer num risco ainda maior. Mas tentar uma economia do livro, abrir bibliotecas, organizando o inorganizável, permutando desordens que jamais se repetirão (Heráclito?) é realmente absurdo, deve trazer até má sorte. É tão pretensioso quanto a idéia de reorganizar num índice alfabético os neurônios do seu cérebro! Além do mais, a biblioteca é o topo da cadeia alimentar, acumula as 3 funções descritas, ao invés de ser apenas uma crematística dos livros: todo livro é um depósito de ácaros, todo livro é um lar em potencial de aracnídeos...”

“Outra Catástrofe jaz a nossa espera, a da superprodução cultural. Somos impelidos a acreditar que no mercado cultural a demanda vai exceder a oferta ainda por um bom tempo (então todos os estoques vão zerar). Mas podemos mensurar desde já um apreciável excesso de oferta sobre demanda na economia cultural do cidadão médio. Mesmo hoje, a criatividade desenfreada excede nossa capacidade de absorção. O indivíduo mal tem tempo para consumir os próprios produtos culturais, quanto mais o dos outros. O público faz o seu melhor: corre para as exibições, festivais, mas se aproxima o limite. Eles vivem repetindo que o público quer ainda mais e que as pessoas nunca terão cultura demais. Mas é uma ilusão de perspectiva colossal. E de duas uma: ou a cultura é meramente um rito ou idioma, e neste caso nunca foi produzida aquém ou além do necessário, ou passou a se comportar como o mercado, com suas edições limitadas, concorrência desleal e especulação, e só se pode esperar os mesmos efeitos que na ruína de 1929 na esfera da produção material: o fim das assunções <naturais> da economia, que depois das imagens de hot capital (bolhas inflacionárias) e circulação exponencial, tornou-se especulativo. Assim como tivemos a Quinta-Feira Negra [que ironia...] de Wall Street, teremos também um Black Sabbath da cultura.”

“O que há lá além de bens imateriais que reestimule a demanda?”

“haverá uma destruição em massa desses bens a fim de resgatar o signo-valor / valor simbólico, bem como sacas de café foram destruídas em locomotivas para resgatar outrora o valor de troca.”

“Drogas: a única commodity ilegal sobrevalorada em escala global. O que não deixa alternativa ao Terceiro Mundo senão explorá-las assiduamente.”

“Um dia veremos o reemergir do circuito paralelo do álcool.”

“AIDS é a África, drogas a América do Sul, terrorismo o Islã, dívida o Terceiro Mundo. Quebras econômicas e vírus eletrônicos são, mais ou menos, os únicos sucessos do Ocidente.”

“Crises são para as camadas mais altas do capitalismo, que rapinam todos os lucros derivados em escala mundial. Catástrofes são para a classe média, que vê suas razões para viver desaparecerem. Os outros (80%) estão tão abaixo do nível da crise que nem mesmo a experimentam. Eles sobrevivem a tudo, se puderem, é claro, instintivamente. Desprovidos até de uma existência econômica, é mais fácil para eles achar um equilíbrio catastrófico simbólico.”

“A crise econômica brasileira é tão ininteligível quanto a especulação wallstreetiana, exceto em sua obscura tentativa de demonstrar a absurdidade do sistema econômico. É um tipo de jogo coletivo, uma aposta alta na hipótese de que uma sociedade pode sobreviver – e por muito espaço de tempo, sem se desesperar de si – na desordem econômica mais absoluta, pelo menos enquanto não dispõe de estruturas racionais ou rígidas. Isso tudo é correlato ao caso dos italianos e o poder político: eles apostam na hipótese de que uma sociedade pode prosperar, insolentemente, sob a ausência de um Estado e de um governo, desde que se conserve sardônica e teatral o suficiente. Itália e Brasil são prefigurações do futuro. Pois todas as sociedades estão condenadas a um dia viver além do político e do econômico.”

#Saúde

“Uma nova arte do body-building: engordar até os mais de 100kg, tornar-se um obeso, massa amorfa, para depois modelar a massa via escultura interna ao desenvolver os músculos de uma área particular e usar os exercícios apropriados para tirar da gordura uma forma.”

“No passado, as doenças físicas eram sublimadas nas paixões da alma. Hoje, a dessublimação das paixões é expulsa pelos vírus do corpo.”

“Pensamentos circulam como o bolo alimentar no labirinto do intestino delgado, com a certeza de encontrar a saída sob a forma de excremento.”

“Em algumas situações, basta uma palavra a mais para acarretar um suicídio, mas basta só um miligrama a mais de barbitúrico para acarretar a ida além do próprio suicídio.”

“Agência Alérgica Apoteótica”

#Audiovisual

“O anúncio publicitário é a Extrema Unção reconciliadora de nós mesmos

com o artificial.”

CATASTROPHY

“A mais requintada catástrofe, maior ainda que o naufrágio do Titanic, ocorreu na noite de 31 de dezembro de 1899, a primeira noite do século. O transatlântico saído de Manaos [grafia de Baudrillard], transbordando em riquezas ligadas à indústria da borracha, velejou rio Amazonas acima, cheio de aristocratas e famosos do mundo inteiro, para a mais luxuosa das festas internacionais. Esses membros da alta sociedade beberam e dançaram a noite toda ao ritmo das bandas, enquanto o transatlântico afundava vagarosamente e se perdia no labirinto da floresta. Eles conseguiram se dirigir para uma das margens secas de um dos inúmeros tentáculos do rio, mas não foram achados até ser tarde demais, quando todos já tinham morrido de fome, sede e calor. Dessa forma foi que uma parte da élite do mundo acabou oferecida como sacrifício humano para a entrada do novo século. Manus deus – Manaus – consonância maléfica.

Não só eles desapareceram, mas até mesmo essa história desapareceu dos arquivos. Eu nunca fui capaz de re-apurá-la na fonte eu mesmo. Será que eu alucinei com o tédio ou o calor? Não, eu tenho certeza que a li como um item genuíno de informação. Por que ela não está na memória de todo mundo, como a tragédia do Titanic?”

“Comunicar? Comunicar? Só meios comunicam.”

“Eventos cativos não reproduzem em cativeiro.” (ler: notícias plantadas)

#Cultura

“O mundo tornou-se um seminário. Tudo agora se reveste dessa forma acadêmica cansativa. Algumas existências são meramente um perpétuo seminário, sequiosas por uma lápide feliz à sombra da Cultura em seus estertores. O Juízo Final se converteu num simpósio gigante, com toda locomoção e estadia pagas de antemão.”

“Um dia descobriremos o gene da revolta. E talvez até o gene da revolta contra a engenharia genética. E muda isso alguma coisa sobre a revolta em si mesma?” “Não há mais como ofender ou causar aversão; em prol da subversão, nenhuma reação. Será que alguma manipulação secreta já teve êxito em desligar todos os genes da negatividade, todos os reflexos da violência, todos os signos do orgulho?”

“Toda nossa semiótica é meramente caridade fora de lugar com seres tão-somente inumanos, essências canibalísticas, com sua hipocrisia semântica (a constante aparência de ter significado).”

“Chega de piedade pelos signos. (...) Signos são tão arcaicos quanto as pedras, mas mais sutilmente indiferentes”

“Quanto mais a imagem evolui rumo à alta-definição, mais a identidade segue rumo à baixa-definição. Quanto mais a sexualidade segue rumo à baixa-definição, mais evoluímos rumo à alta-definição de todas as técnicas corporais.

Alta-definição é a definição-média de pornografia. Todas as formas de alta-definição são indexadas ao genital (e aos genitais) no pornô. Sempre há algo obsceno na alta-definição, pois, mesmo no campo cultural – aliás, particularmente nesse campo.”

“O pós-moderno é o primeiro conduíte verdadeiramente universal e conceitual, como jeans ou Coca-Cola. Tem as mesmas virtudes em Vancouver ou Zanzibar; Chicago ou Budapeste. É uma fornicação verbal global.”

“Há duas espécies animais de intelectuais: aqueles que preferem carne fresca e aqueles que preferem carniça. Aqueles que preferem destroçar conceitos vivos e aqueles que preferem os restos. Eles não possuem nada em comum, exceto que são ambos mamíferos.”

BRAZIL

“Talvez a predileção brasileira pelo desfile de carnes, particularmente a das nádegas, seja mais da ordem do comestível do que do sexual. Esse era o pedaço do corpo humano mais delicioso para uma sociedade canibal que acabou permanecendo delicioso aos olhos. E esse olho talvez seja mais canibal do que luxurioso.”

“Ao sul do Rio Grande, assim que se cruza a fronteira dos Estados Unidos, a maldição começa. A América do Sul inteira continua a viver o momento da imolação dos impérios que colapsaram à chegada dos espanhóis e portugueses e que continuarão colapsando para sempre.”

“a cena de um desespero absoluto da conquista, que passou a correr nas veias de uma população inteira (...), incluindo a raça branca, que parece aceitar que não há esperança para esse continente e ele está condenado ao escândalo da exterminação. Lar das reservas planetárias da clorofila e cocaína, do oxigênio e da corrupção total dos recursos e das mentes.”

Ninguém tem qualquer esperança real de sair desse cenário. Talvez nunca tenha havido desejo algum de libertação, de se arrancar desse primitivismo, exceto dentro de um estrato político-intelectual reduzido e epifenomênico. E mesmo seu comportamento é problemático. Tudo é planejado em termos de normas modernas (planos, programas, organização), mas, no momento da ação, há uma perda de motivação quanto aos resultados. Como se tivessem provado o que deveria ser feito, mas em seguida não tivessem mais vontade de insistir. As coisas vão bem mal, é claro, mas não pense que isso os torna infelizes, já que esse contratempo apenas lhes confirma a impossibilidade de escapar do atoleiro.

É o mesmo com as relações interpessoais: generosidade à flor da pele, uma afeição tocante e, ao mesmo tempo, apatia, despreocupação – talvez tão artificial quanto as demonstrações calorosas? Mas não: a questão é que nada deve ser dado como certo, para que o jogo continue. A relação com o tempo é a mesmíssima que a com o dinheiro e as demais: encontros, reuniões, o volume das trocas é deliberadamente todo deixado no ar. Todos são felizes com esse estado de permanente instabilidade monetária e temporal. É um jogo, é um destino. Todos os planos econômicos são condenados ao fracasso aqui com tanta segurança que o que vem a acontecer não é nem mesmo uma falha; é um espetáculo, e, como tal, compete com o futebol, o samba, os cultos, o jogo do bicho. Esse é o Brasil real, como Muniz Sodré fala, não o Brasil simulado, aquele que querem que ande no mesmo ritmo das tecno-democracias ocidentais. Como é realmente, o país está condenado, sem dúvida, e com auto-contentamento, a perpetuar o sacrifício, a imolação, a canibalização ritual de toda a sua riqueza. E por que não?”

“o curto-circuito entre um mundo ritualístico e primitivo da lentidão, em que o ciclo se completa espontaneamente, e um mundo moderno da velocidade e aceleração. O resultado é incoerente: eles avançam, tomam a dianteira com determinação, e logo em seguida recaem, fatalmente, no mesmo ciclo de lentidão e são mais uma vez contaminados pelo vírus letárgico da indolência. Se eles não se mostram comprometidos com a consequência de seus atos, não é por falta de determinação ou energia, mas porque parte dessa energia permanece presa ao primeiro ciclo, ao qual ainda estão apegados. Daí a severidade com que os brasileiros lidam com as falhas em seus projetos ou programas. Nada é destinado a ir direto ao seu alvo, não se espera de ninguém que leve a operação até sua conclusão. O final tem de ser deixado ao acaso, ao diabo, à fatalidade. Reivindicar controlar essa parte do fogo, essa partilha maldita, assumir responsabilidade por tudo isso, seria altamente absurdo e sacrílego. É o ciclo que comanda, e o ciclo é como a curvatura da terra. E a indolência, o improviso é apenas a aceitação tácita no coração das pessoas desse elemento enigmático que frustra todo projeto e ordena que as chances de dar certo sejam meramente figurativas.”

“A regra que diz que com qualquer coisa você deve sacrificar uma parte dela se aplica ao sofrimento além do prazer, à tristeza além da alegria.” “É como a conjunção de eventos no seu mapa astral. Por mais benéfica a constelação, você sempre tem de aceitar a porção da arbitrariedade maléfica no devir dos signos.”

“mais além da alienação, dissolvendo-se na pura outridade.”

“Nossa alta sociedade cultivada só se empanturra de Beckett, Cioran, Artaud [Baudrillard seria o quarto destes cavaleiros do Apocalipse?] e todas essas formas consagradas de cinismo e niilismo para se evadir melhor de qualquer análise das formas atuais de desespero. Eles denunciam com a maior energia político-moral toda presente instância do niilismo, da niilidade dos valores, enquanto <culturalmente> saboreiam as formas heróicas porém anacrônicas de niilismo e o inumano. Eles enaltecem a divisão maldita, todavia mantêm a água benta ao alcance.” Entende-se o que Nietzsche queria dizer com: eu não sou nenhum santo.

#Ecologia

“O desejo, o corpo, o sexo terão sido meras utopias como o restante: Progresso, Iluminismo, Revolução, felicidade. Já estamos evitando o sol por medo do câncer (com um olho na ressurreição dos corpos?), desistimos do sexo diante dos perigos, nos exprimimos cada vez menos em público, paramos de fumar, beber, foder. A Nova Ecologia Política está em marcha. Vigie a sua parte da equação! Concentre-se na salvação das espécies e se divirta o menos que puder. Mas coragem! Um dia a camada de ozônio vai ser substituída pela camada de todos os detritos que dejetamos no espaço. Há uma justiça nisso: um dia seremos salvos pela poluição como hoje somos salvos, politicamente, pela servidão.”

#Turismo

US: “Tanto com os puritanos faraônicos – os dos domos e templos – quanto com os grandes apostadores – os dos porn-shows e das luzes ofuscantes – ficamos com a mesma impressão de um povo eleito ou maldito, talvez por conta do local desértico e da luz.” Coast to coast the same boast Dinheiro opaco do cassino, Jesus de vidro transparente A. o “proud of his values” de terno, gravata e cartão estourado assepsia de quem anda comigo engenharia social seleção supranatural

“Uma das atrações de um parque americano: você adentra um labirinto e se perde, sem saber por onde ir, verdadeiramente inábil para achar a saída. Isso dura uma ou duas horas, dependendo de qual ingresso você comprou na entrada, no fim das quais um helicóptero pousa e o extrai.”

“Na Disneyworld da Flórida eles estão construindo uma paródia gigantesca de Hollywood, com boulevards, estúdios, etc. Mais uma espiral no simulacro. Um dia vão reconstruir a Disneylândia na Disneyworld.”

“Um dos prazeres de viajar é mergulhar nos lugares em que tantos outros estão obrigados a viver e depois emergir incólume, cheio de um prazer malicioso de abandoná-los a seus próprios destinos. Mesmo sua felicidade local parece estar subordinada a uma resignação secreta. Ou, ao menos, nunca pode ser equiparada à liberdade de partir. É nesses momentos que você percebe que não é o bastante estar vivo; é preciso atravessar a vida. Não é o bastante ter visto uma cidade; é preciso tê-la atravessado.” Aplicável ao TEMPO (“Eles ainda estão no meu ontem, coitados!”). “O essencial não é pensar a idéia, mas superá-la.”

“Madrugada no hotel nos limites da cidade. O fio do sono é cortado pela insônia da matilha. Você gostaria de se levantar e estrangular aquele cachorro que acaba de latir lá longe, mas qual é o sentido disso? O contágio começa de novo aqui e acolá, esporadicamente, e de repente explode num uivado generalizado. Depois, traiçoeiramente, começa a diminuir no espectro (fade out) e você já imagina poder tirar seu ronco novamente, quando alguma criatura quadrúpede patética solta outro ganido solitário em direção à lua, acordando seus clones sonambúlicos, que latem um atrás do outro... A noite chega ao fim e o galo começa a cacarejar. Só aí é que vence o silêncio, sucedido pelos sons baixinhos e anestesiantes dos primeiros hóspedes que acordam.”

“São Paulo – indiferença e loucura

Como o céu: luminoso e fumacento – o tráfego: sonhodoramente violento

Uma passagem estridente sob a varredura das avenidas

Uma passagem estridente através da indistinta mistura das raças”

“As estátuas com olhos de ágata e cabelo humano imputrescível nas igrejas barrocas de Minas Gerais.”

NERVO INICIÁTICO: COM(G)R(ESSO) NACIONAL

“Em Brasília, a abstração da cidade oferece pelo menos uma certeza: ao menos os que forem loucos o suficiente para atravessar suas vias expressas – arriscando suas vidas no processo – são seres humanos. A raça humana não é em lugar nenhum tão incongruente quanto nesses domínios extra-terrestres, com a exceção dessas criaturazinhas tão tocantes que passeiam a pé. Mas, em última hipótese, os seres humanos da capital, para se sentirem mais humanos, se refugiam de quando em quando num dos numerosos cultos das cidades-satélites, numa atmosfera de kitsch iniciático mais exibicionista e sincrética justamente por ser tão contrastante com a geometria sideral da cidade-mãe.”

“Os ricos de Copacabana são mantidos confinados pelos seus próprios escravos. Escravos que, pacificamente, silenciosamente, devoram o espaço-tempo de seus mestres. Mestres que vedam o acesso, mesmo em sonho, aos seus apartamentos luxuosos, mestres que detêm as chaves para as próprias almas dos escravos; exatamente como os escravos detêm as chaves dos elevadores pessoais de seus mestres.”

#Religião/Teologia

“batismo por imersão fetal.” “Esse é o destino de todo sacramento: se simplifica com o tempo.”

“Mesmo se o santo sudário fosse genuíno, a Igreja, tendo mais precisão hoje de uma garantia de capacidade crítica que da fé dos seus crentes, teria tido ainda assim de reconhecê-lo como falso.”

“Fruir o signo em vez de usá-lo é a perversão dos seres humanos. Porque a única fruição é de Deus e o único uso é o uso do signo (Santo Agostinho).”

“Os aztecas acreditavam que apenas pelo derramamento de sangue humano a energia solar podia ser regenerada. Podemos mesmo acreditar que eles erraram tanto assim em suas crenças?”

“O próprio Deus não acredita em Si, de acordo com a tradição. Fazê-lo seria uma fraqueza. Também seria uma fraqueza acreditar que temos uma alma ou um desejo. Deixemos essa fraqueza aos outros, como Deus deixa as crenças para os mortais.”

#GERAL – categorias não-disponíveis no site

#Filosofia

“O <livre-arbítrio> é grandemente assegurado no exterior hoje em dia. Mas se torna, por dentro, tristeza sob a ação repelente automática dos anticorpos, o enduro da vontade provocado por enzimas perversas – a rejeição da mente. (...) Isso é basicamente a rebelião das energias, a conspiração de uma vontade secreta contra todas as escolhas e cálculos existenciais. Logo depois você tem de recair em qualquer velha forma supersticiosa de tomada de decisão. (...) (e a liberdade é um corpo heterogêneo no universo metafísico), na animadversão ou qualquer loucura do gênero – o equivalente mental da rejeição biológica.”

“O sofrimento é sempre um sofrimento relativo à indiferença patética do mundo quanto a nós” “A ironia é uma arma da astúcia, inevitavelmente maliciosa, inevitavelmente tornando as coisas piores, mas nos confortando frente à crueza da doença.” Esse comentário me lembra o P**** M******. O bom compadecido.

“como é bem sabido, ao brincar de pique-esconde você nunca deve ficar invisível demais, ou os outros vão se esquecer de você.”

“é a precessão da resposta sobre o enigma da (a pergunta sobre a) existência que torna o mundo indecifrável.” “A Filosofia moderna se jacta, afetando auto-suficiência, de haver formulado inúmeras questões decisivas para as quais não há respostas, mas na verdade o que temos de aceitar de uma vez é que não há, nunca houve [doente é ser o que?], pergunta alguma, caso em que nossa responsabilidade se torna total, já que SOMOS a resposta – e o enigma permanece, assim, insolúvel e pleno -- eu diria, unilateral.”

“Curiosamente, todos os adjetivos conceituais que definem os fenômenos extremos da contemporaneidade têm uma forma plural anômica no Francês: fatals, fractals, banals, virals. Já os antigos valores possuem plurais tradicionais: égaux, moraux, finaux, globaux.” Desse ponto de vista, o Português é a média com o universo, o bajulador perfeito; e o Inglês, a nadificação ultimada da língua e do homem. Não declino-para-nada, soul-pára-mor.Te

“investimos toda nossa liberdade no louco desejo de tirar o máximo de nós mesmos.”

“Loucura horizontal, a nossa loucura (...) a loucura do autismo – em oposição à loucura <vertical> de anteontem, a loucura psíquica, a loucura transcendente da esquizofrenia, da alienação, da inexorável transparência do Outro. Hoje em dia tudo o que vemos são as monstruosas variantes da identidade: a do isofrênico, sem sombra, transcedência, Outro ou imagem, a do autista que, como tinha de ser, devorou seu próprio duplo e absorveu seu irmão gêmeo (ser um gêmeo é, por sinal, uma forma de autismo <a dois>). Loucura identitária, ipsomaníaca, isofrênica. Nossos monstros são todos autistas maníacos. Como produtos de uma combinação quimérica (mesmo quando é uma genética), desprovidos da heterogeneidade hereditária, afligidos com a esterilidade hereditária, eles não têm outro destino senão caçar-se desesperadamente uma <Outridade> por intermédio da eliminação de todos os Outros (Frankenstein – mas esse é também o problema do racismo). Computadores são autistas, máquinas celibatárias: a fonte de seu sofrimento e a causa de sua vingança é a natureza recalcitrante e tautológica de sua própria linguagem.

Onde quer que observemos, constatamos loucura horizontal se opondo à vertical.”

“Todas essas coisas – ser um gêmeo, incesto e, até um certo ponto, homossexualidade e narcisismo – são mais profundas e potentes que a sexualidade e a única fuga em potencial é a morte.”

“Ao princípio da separação de Segalen, da eterna incompreensibilidade, devemos agregar o princípio da eterna inseparabilidade em física de partículas. Essa simultaneidade de dois princípios opostos tem de ser pensada por inteiro até o fim. Não se pode estar mais separado e mais inseparável que o eu e a vida.” Obstinado em cristalizar-se. O banhista do rio heraclitiano quer agarrar-se às margens, e de fato o consegue por alguns poucos segundos, mas a correnteza é muito forte, e lá vai ele de novo, atabalhoado e engolindo água... Este eu que sou agora, é a Pura Morte, até virar apenas pegadas, e depois tudo menos isso, nem ao menos isso... Obstinado em morrer, mas ainda não é a sua hora. Ha-ha, nem é sua nem é hora. Nem o “mas”, muitos menos o “é”, talvez então o NÃO, talvez... a... não, de novo não... Rio Heraclitiano hoje é Zeus-peniano. Translúcido eletrochoque não-venenoso. Água-viva arraia-miúda do fundo do corrégomar. Medusa desperta, mentira que faz mimir. A água é um excelente metal.

“Andar atrás de alguém é a ilusão cômica de nosso tempo.

Andar atrás dos outros é a ilusão trágica.”

“Nunca um elevador sem piso

Nunca um sonho sem elevador”

Sempre um sonho meio aéreo

“A viagem, como a existência, é uma arte não-figurativa.” Para nós ir a Buenos Aires é como pisar na Lua. Tanto faz se o astronauta é de verdade ou o ambiente é simulado. Deserção: virtude feminina. A(s irmãs) América, a (lua) Europa, a Oceania, a África, a (linda) Ásia (de Maomé), a Patagônia...

“Alergia a coisas muito mais impalpáveis que a poeira.”

“o desejo foi para toda uma geração algo como uma estrela-guia. Hoje é só um satélite-observatório.”

“simulação não é o modelo de nada; assumir a simulação é a abandonar a simulação”

“A tentação de não existir para ninguém, de demonstrar que não existe para ninguém. Esse é o complexo do refém – o refém em quem todos logo perdem o interesse. Uma fantasia pueril: verificar se alguém o ama. Algo que você nunca deve tentar. Ninguém encara tantos suplícios por uma pessoa.”

“Não se pode ter o bolo e comê-lo também

Não se pode ter a esposa e fodê-la ao mesmo tempo

Não se pode foder a própria vida e salvá-la junto”

“ninguém quer engravidar a filosofia, mas pouco importa: a criança nasce mesmo assim, por telepatia. Essa desafortunada criança já nasceu recebendo a Extrema Unção heideggeriana dos satélites além-túmulo e saiu flutuando, iluminada pelos reflexos dos picos transalpinos, rumo ao sétimo céu da filosofia.”

“Ficar sem signo é tão grave quanto perder a própria sombra.”

“O fim da História, o fim do real, o fim dos dinossauros, o fim do ozônio, a desaparição da mulher – um fim ao remorso, o objeto perdido está atrás de nós! Há uma última vez pra tudo – a última vez já foi!”

“Não há sentido nenhum em questionar a realidade quando mais de dez estão presentes. Toda audiência de mais de 10 se torna automaticamente defensiva e reage violentamente a qualquer desafio ao real e verdades manifestas. Nenhuma asserção radical pode ser feita para mais de 10 pessoas.”

“Caminhar entre tantos rostos de cujos nomes sua memória se esqueceu é como estar cego. A obliteração de nomes e rostos na memória é como o escurecimento da luz do dia para os olhos.” “Uma luta-livre entre cegos. O árbitro é cego também. Bem como os expectadores. E todo o evento acontece no escuro (essa última condição é supérflua).”

#GuerradosSexos

“Todo ser humano julgado inferior por um outro automaticamente se torna superior a esse outro. É o que acontece em relações homem-mulher: a mulher presumida inferior imediatamente se torna superior. O oposto não é verdadeiro: quando uma mulher vê um homem como um ser superior, ela não se torna seu inferior mas está, ao invés, meramente em postura de sedução. E se um homem vê uma mulher como um ser superior, ele não se torna seu inferior: ele descansa meramente em postura de admirador.

A mulher atenta a essas coisas as nega veementemente, alegando que a tal superioridade feminina é uma fantasia masculina – mas dado que a suposta inferioridade da mulher é da mesma ordem, quiçá haja apenas fantasias masculinas? Nesse ponto, a mulher está sob risco de ceder à tentação de acreditar em si mesma como superior ao homem (o que é diferente de sê-lo). É então que ela se torna imediatamente inferior à própria feminilidade, i.e. igual, com efeito, ao homem quando ele, como é usual hoje, se torna inferior à própria essência masculina.”

“O sono pode às vezes ser o equivalente a uma briga doméstica silenciosa. Pela manhã, dependendo de como foi o sono de cada um, marido e mulher podem ter se tornado completos estranhos um ao outro.”

“É difícil fitar alguém terna e desapaixonadamente enquanto a insulta carnalmente no mesmo grau da impassibilidade e ternura faciais usadas. É difícil falar com aquela engenhosidade, distraído pela sensualidade das pernas nuas debaixo da minissaia negra, em que alguém poderia resvalar sem sequer ser percebido. Ainda assim a beleza de seus traços contraria qualquer senso de ciúmes ou concupiscência. Nesse nível, a diferença sexual desafia a imaginação, a beleza é como um signo astrológico.”

“Toda mulher é única. Ela nunca é, portanto, ideal, porque a mulher ideal é um duplo.

Duas mulheres sempre se fundem numa só, combinadas numa eterna duplicidade.

Duas mulheres reais, se se combinam não só na imaginação, podem constituir uma mulher ideal.”

Mas, lá no fundo, duas mulheres não são o bastante. O homem moderno (Der Philosoph, Le Philosophe, Three Women in Love, 1989; Drowning by Numbers, Afogando em Números, 1989) está condenado à fantasia das três mulheres. Com 3 mulheres (ou mais), não há ciúmes nem predileção; uma progressão ritual [encadeamento] é criada, uma transferência de qualidades de uma a outra, uma nada sabendo da outra. Nenhuma quebra: a fagulha de uma nos olhos das outras, os ciúmes de uma no gozo das outras, a transparência de cada uma nas nuances das demais.”

“Masculino e feminino estão a anos-luz de distância. Ninguém nem mesmo sabe se persiste uma relação entre os dois. É como bolas de bilhar que se chocam em velocidades diferentes, uma tocando a outra antes que a outra a toque: a não-polaridade dos sexos significa que eles não mais compartilham o mesmo espaço. Cada sexo não mais é, exatamente, o outro do outro sexo. Destarte, não há mais, exatamente, diferenças de sexo.”

RELAÇÃO ASSIMÉTRICA NO MUNDO DO AMOR: “O homem nunca significou a morte para a mulher” “Para haver diferença, as coisas têm de ser comparáveis. Apaixonar-se pelas próprias diferenças – o modelo do sexismo.”

“Histéricos [nós os ansiosos, instáveis por natureza] são esquivos, porque, quando generosos de espírito e demonstrando admiração, obtêm uma forma de reter o controle sobre seus favores. Ou eles são generosos com seus favores, mas mantêm uma distância mental. Esse equilíbrio é uma forma de sedução. Por outro lado, aqueles que se doam completamente são insuportáveis. São o tipo das mulheres harmoniosas, insignificantes e em paz consigo mesmas que qualquer um gostaria de trancar nalgum lugar e fazer sofrer.”

“A mulher da sua vida – a expressão é absurda. De fato, é a mulher ou a vida. Não há espaço para as duas juntas. A competição é por demais acirrada.”

#Psicanálise

PSICANALIZADO & ZERADO

“Encarando duas psicanálises ao mesmo tempo. Mais sutil que isso seria ter dois inconscientes e só um psicanalista (que não teria mais nenhum).”

“Esse poder que temos de nos identificarmos com o outro nos sonhos, de substituir nós mesmos por esse outro, de fazê-lo falar mais sutilmente do que fazemos nós mesmos. De saber nos sonhos o que não sabemos sobre ele na realidade. Como se estivéssemos vivendo instintivamente na cabeça do outro. Como se a inteligência dos sonhos fosse a de um diretor de teatro exógeno, impessoal (muito embora completamente imerso ele mesmo no sonho), cuja identidade não é mais relevante para ele mesmo do que a de qualquer outra pessoa.”

ESTRANHAMENTE AUTOBIOGRÁFICO: “Comportamento territorial furioso. Não cace em minhas terras e eu não caçarei nas tuas. Furiosamente temperamental. Rimbaud. Lentidão, falta de cultura, o desejo fremente de cortar relações. De se livrar inclusive da família, dos objetos, da memória, de tudo – de sofrer uma purificação total. Ab-reação[*] violenta à origem, desgosto pela continuidade. Camponês nômade. Ainda é a Temporada no Inferno.”

[*] “[Psicanálise] Reaparição consciente de sentimentos até aí recalcados.”

“Anorexia: ab-reação a nossa euforia (bem-estar)” expiar culpas em dietas

“Hipocondria: auto-ingestão de má consciência, digestão de nossos próprios corpos mortos.” Minha expiação: sentar e trabalhar quando nem preciso.

Rafael Cila Aguiar e Jean Baudrillard
Enviado por Rafael Cila Aguiar em 22/07/2017
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